"A advocacia tem um viés de tradicionalismo que é natural. Somos os guardiões da estabilidade, da previsibilidade, o que pode ser chato, mas faz parte do nosso papel", é o que aponta Natalia Kuchar, corporate counsel da Google, ao abordar a natureza conservadora do mundo jurídico durante o 4º Fórum de Transformação Digital Jurídica, que ocorreu na última quarta-feira, 6, em São Paulo.
No entanto, embora os limites da jurisprudência impeçam inovações na atuação direta, há processos internos nos escritórios que podem ser aprimorados com a adoção da tecnologia. Muitas bancas brasileiras já reconheceram essa necessidade e estão fazendo investimentos substanciais para se manterem atualizadas.
Segundo uma pesquisa realizada pela Análise Editorial para o anuário ANÁLISE ADVOCACIA 2023/2024, 80% dos escritórios brasileiros tiveram a tecnologia como o principal alvo de seus investimentos em 2023. E há boas razões para essa decisão.
Conforme os resultados da pesquisa, 44% dos executivos brasileiros identificaram a defasagem tecnológica como um fator determinante para o rompimento de contratos. No processo de contratação, 58% revelaram que escritórios jurídicos atualizados tecnologicamente têm mais chances de fechar negócios.
Daniel Marques, diretor da Associação Brasileira de Lawtechs e Legaltechs (AB2L), contribui para esclarecer essa nova demanda e explica por que a tecnologia se tornou tão crucial para o universo jurídico.
De acordo com ele, essa mudança se deve, em grande parte, à crescente atribuição de processos repetitivos para as Inteligências Artificiais, liberando assim os advogados para lidarem com demandas mais significativas.
Inovação para quem?
Segundo uma pesquisa conduzida pela Fundação Getúlio Vargas, 85% dos escritórios de direito buscam realizar inovações para otimizar e modernizar processos internos. Em segundo lugar, com 68%, está o objetivo de proporcionar um serviço e atendimento ao cliente mais eficazes.
Marques destaca que esse é um erro crucial em uma estratégia de longo prazo para qualquer banca, independentemente do serviço prestado. Ele enfatiza que, ao pensar em inovação e na implementação de tecnologia, a prioridade muitas vezes está em melhorar a vida interna, relegando o cliente a um segundo plano. No entanto, mais cedo ou mais tarde, essa abordagem pode resultar na perda do cliente.
Essa constatação vai ao encontro de uma pesquisa conduzida pela própria AB2L, que revelou que a maior preocupação dos advogados é ser claro e objetivo nos atendimentos aos clientes. No entanto, os clientes consideram essencial, para sua realidade, uma abordagem mais empática com suas necessidades.
Ao ilustrar com a estratégia de Jeff Bezos, empresário e magnata norte-americano famoso por fundar e liderar a Amazon, Daniel enfatiza como a formulação de políticas internas adaptadas às exigências dos clientes, ao invés de se restringirem unicamente aos processos internos da empresa, não apenas fortalece a confiança do público, mas também impulsiona o crescimento no mercado.
Como mudar?
Mesmo com o desafiador cenário de reformular processos para inovar com foco no cliente, que pode ser assustador, Natália Kuchar, general counsel da Google, utiliza o bom humor para provocar uma reflexão: "Não dá para se esconder. Eu acho que temos que refletir e pensar em conjunto, em vários setores, sobre como a gente vai melhorar essa cultura".
Ela ainda destaca que o desejo constante por inovação, às vezes, impede de reconhecer que existem áreas que não precisam ser renovadas, utilizando o exemplo da regulamentação de terras e edificações, que, segundo ela, pouco mudou ao longo dos anos. Em vez de tentar reinventar esses processos, direcione os esforços para demandas internas que podem ajudar a melhorar o seu processo.
Mas para que isso seja assertivo, Kuchar enfatiza que essas melhorias têm que estar aliadas aos dados. Ao sentar e analisar essas informações, é possível identificar o crescimento de demandas que são verdadeiras, ou aquelas que são esperadas devido a outros fatores.
Com esses dados, é possível verificar se é preciso contratar um novo serviço ou se o antigo ainda pode ser utilizado, identificar as áreas que mais demandam atenção e até mesmo visualizar problemas antes que eles surjam.
Kuchar também afirma que os processos repetitivos serão completamente automatizados, deixando o advogado com outros processos que demandam mais atenção humana.
O que resta?
Kuchar considera que, com a automação dos processos, sobra para os advogados a parte mais interessante e envolvente dos processos jurídicos.
A executiva confessa que gosta de trabalhar em empresas porque aprecia sentar e entender as necessidades dos seus clientes, principalmente voltada para a área de contratos, que é a sua responsabilidade.
"O aspecto humano é muito importante, e ele tem que andar junto da renovação, porque essa automatização traz muita informação sem precisar estar com o seu cliente. O que não quer dizer que você só vai entregar o PDF, é preciso guiá-lo e ajudá-lo na tomada de decisão. Eu acho que isso é o grande valor dos advogados que não terá tecnologia que vai substituir", finaliza.