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Brasil arrisca ficar fora da revolução da IA, alerta Ronaldo Lemos

Painel na FENALAW 2025 reuniu especialistas para discutir os impactos da inteligência artificial no Direito. Ronaldo Lemos alertou para o risco do Brasil ficar à margem da revolução tecnológica caso adote regulações inadequadas e haja demora na implementação de soluções originais

23 de October 15h45
(Imagem: Análise Editorial/Ana Luiza Figueiredo via DALL-E / Olhar Digital)

A inteligência artificial já não é mais uma promessa distante para o mundo jurídico brasileiro. É uma realidade que está redefinindo práticas, desafiando modelos de negócio e colocando em xeque a própria identidade da advocacia. Esse foi o tom do painel "Inteligência Artificial e Inteligência Jurídica: Como Pensar o Direito em Face à Mudança Tecnológica", realizado na FENALAW 2025, que reuniu alguns dos principais nomes do debate sobre tecnologia e direito no país.

Ronaldo Lemos, fundador do ITS Rio e colunista da Folha, foi direto ao ponto: "Ficar parado não é opção. O risco da inação é muito grande. Se a gente demora na adoção, a gente perde oportunidades, a gente fica com a nossa prática jurídica obsoleta." A frase ecoou durante todo o debate que se seguiu, com a participação de Alexandre Zavaglia, diretor da Legal&Tech Design, Renato Opice Blum, executive chairman do Opice Blum Advogados, e Samy Dana, economista e co-founder da Fresh Codes, sob a moderação de Silvia Piva, COO e sócia do GHBP Advogados.

O maior projeto da história da humanidade

Lemos começou sua apresentação contextualizando a dimensão do investimento global em IA. "Em julho de 2024, o investimento em IA já tinha ultrapassado 1 trilhão de dólares. Isso é maior do que o desenvolvimento da bomba atômica, o projeto da internet e a ida à lua somados", revelou. Para ele, trata-se do maior projeto da história da humanidade, e o Brasil corre o risco de ficar completamente de fora.

Apesar de se tratar da maior inovação desde a internet, o especialista ressaltou que devemos nos preocupar em relação a alguns pontos sensíveis. Lemos apresentou exemplos preocupantes de deepfakes e fraudes viabilizadas pela IA. "A verdade é, a gente não vai poder confiar em mais nada. A gente não vai poder confiar em áudio, não vai poder confiar em vídeo, porque tudo isso hoje está sob ataque dessas ferramentas", alertou.

PL 2338: O risco de copiar a Europa

Um dos momentos mais contundentes do painel foi a análise crítica de Lemos sobre o PL 2338, projeto de lei que busca regular a IA no Brasil. "Eu sou bastante crítico ao PL 2338", declarou, sem rodeios. "É um PL que deriva do modelo europeu. Pegou o EU AI Act e transportou para o Brasil com algumas modificações, mas a matriz é basicamente a matriz europeia."

O problema, segundo Lemos, é que a própria Europa está se distanciando do seu modelo regulatório adotado. "Há relatórios como do ex-ministro da Itália, Mario Draghi, encomendados pela Comissão Europeia, analisando que o efeito do PL europeu é que a Europa está ficando para trás numa área que é absolutamente crucial", apontou.

Para o advogado, o maior risco do PL brasileiro é criar regulações pesadas sem distinguir entre uma startup de duas pessoas e uma big tech de 20 mil funcionários. "O maior risco que eu vejo para o Brasil é que o Brasil fique totalmente de fora do desenvolvimento da IA. Esse risco a gente não pode tolerar. É um risco que é quase existencial."

IA e os limites constitucionais

Alexandre Zavaglia, trouxe ao debate a perspectiva dos limites legais e éticos. Sua análise focou em setores de aplicação da tecnologia, especialmente no judiciário.

"Quando a gente vai criar algo, a gente tem que olhar o que a regulação setorial permite, o que que diz o direito", defendeu Zavaglia. Ele foi categórico ao citar a Constituição: "Pode existir no nosso país um juiz robô tomando decisões diretamente? Só se a gente mudar a constituição."

O especialista identificou três atos privativos do magistrado que não podem ser substituídos pela IA: a sentença, a valoração da prova e a fundamentação da sentença. "Essas três atividades não podem ser substituídas pela IA porque estão lá no nosso Código de Processo Civil, Código de Processo Penal", explicou.

Zavaglia utilizou o caso da IA Garfield, de Londres, frequentemente citado como o "primeiro escritório de IA" para exemplificar seu ponto. "Foi autorizada uma única iniciativa para uma esteira de pequenas causas, para ações de cobrança de até £10.000. E o regulador deixa claro: o responsável por toda a construção dos argumentos é um escritório e com os advogados assinando a responsabilidade pelo conteúdo", esclareceu.

O impacto econômico

Samy Dana trouxe a perspectiva econômica e tecnológica ao debate. Como desenvolvedor e economista, ele foi direto:

Renato Opice Blum complementou a análise trazendo dados concretos sobre o impacto da IA no mercado de trabalho. "O World Economic Forum diz: 92 milhões de empregos serão deletados, mas 170 milhões serão criados. Qual que é o problema? É que serão novas posições num curto espaço de tempo. E é isso que preocupa. Não sei se a gente vai ter tempo", alertou.

A Fresh Codes desenvolveu uma abordagem "um para um": ler a petição, analisar preliminares, captar o estilo do advogado e montar a peça. "Substitui 100% o advogado? Não. Essa é para advogados, não é para o consumidor final. O advogado é uma curadoria", enfatizou.

Sobre o futuro da profissão, Dana foi realista: "Vai mudar muito não só a forma de precificar, como também a forma de agir. Cada escritório vai ter que escolher a sua IA, como escolhe a sua tese, a sua doutrina. A IA vai fazer parte do perfil, do DNA de escritórios."

O economista também alertou para um risco paradoxal: "Se você não adotar IA vai ser pior, porque aí vai ter gente despreparada jogando dados no ChatGPT de forma amadora, expondo dados na internet e provavelmente o resultado vai ser ruim."

Prudência: Uma virtude cada vez mais necessária

Voltando à palavra, Ronaldo Lemos concordou que o uso profissional da IA exige cuidados fundamentais. "Colocar dados num GPT aberto é uma péssima ideia. Colocar dados de cliente, colocar questões que são segredos empresariais no GPT, isso não é uma boa ideia", alertou.

Mas o ponto central de sua argumentação foi a responsabilidade profissional. "Aquela desculpa de falar assim: 'Não, foi culpa da IA, a IA que errou', não tem culpa da IA, não, a culpa é nossa. A responsabilidade profissional vai ser sempre do profissional que assina a peça."

Lemos destacou o risco das "alucinações" da IA, quando ela inventa jurisprudências inexistentes. "Especialmente quando você pressiona a IA, ela inventa jurisprudência. Muita gente pega aquela jurisprudência maravilhosa, bota na petição e é pego. Isso destrói a sua reputação."

Para Lemos, a prudência e o conhecimento sobre a IA tornarem-se a características centrais do advogado moderno. Ele ilustrou com a história (possivelmente mítica) de Rui Barbosa: um cliente pagou R$ 150 mil por uma consulta que durou 10 segundos. Ao questionar o valor, Barbosa responde: "Sim, eu levei 10 segundos para pegar o livro da estante e 40 anos para saber qual livro tirar e qual parte do livro te mostrar."

"A pessoa e a IA juntas produzem um resultado muito superior do que a pessoa sozinha ou a IA sozinha", concluiu Lemos, defendendo uma abordagem equilibrada. "Se eu for contratar um advogado e o advogado falar: 'Eu não uso IA em nada que eu faço', muito obrigado, não quero. Agora, se eu contratar um advogado também que fala: 'Eu só uso IA, eu delego tudo para IA', muito obrigado, eu também não quero."

Tecnologia na prática

Renato Opice Blum chamou a atenção da plateia ao demonstrar, em tempo real, ferramentas de IA que já usa no dia a dia. Equipado com óculos inteligentes da Meta, ele mostrou como a tecnologia está embarcada em dispositivos vestíveis. "Eu posso conversar, perguntar onde é que eu estou, tirar uma foto, gravar um vídeo", explicou.

Mais impressionante foi a demonstração de escuta ativa: durante o próprio painel, uma ferramenta de IA estava transcrevendo e sugerindo tópicos de discussão em tempo real. "Olha que interessante, ‘IA na advocacia precisa de regulamentação específica para garantir ética’", leu Opice Blum de sua tela, mostrando uma sugestão gerada pela ferramenta durante a conversa.

O advogado também destacou uma mudança fundamental na dinâmica profissional:

Ele propôs um exercício à plateia: usar a IA para simular um processo completo, desde a inicial até recursos no STF, e depois perguntar a probabilidade de ganho. "Se a IA falar que você tem 33% de chance de ganhar, você entraria com essa ação?", perguntou à plateia. Ninguém levantou a mão.

"Mesmo assim, eu posso argumentar com o magistrado: 'Acompanhe comigo, excelências, as ferramentas de IA disseram que eu tenho 33% de chance só de ganhar essa causa, mas a minha causa ela é diferente de todas essas outras ações que geraram esse percentual jurimétrico'", exemplificou, mostrando como a tecnologia pode ser usada estrategicamente na argumentação.

O futuro é híbrido, mas o tempo é curto

Samy Dana trouxe uma reflexão final sobre probabilidades e confiança. "A gente deve caminhar em breve para o seguinte: você me deu uma tese, você me deu uma peça, o quanto você confia nisso? E essa informação talvez seja tão ou mais importante do que a peça em si."

O economista também alertou para os custos ainda proibitivos da tecnologia. "É muito caro fazer IA própria. Se a gente pegar o Tribunal de São Paulo, o estado, gastaria em torno de 40 milhões de reais só para processar os dados que eles têm", revelou, sugerindo que haverá uma divisão entre empresas especializadas em bases de dados e outras em consumo.

A moderadora Silvia Piva encerrou com uma reflexão que sintetizou o debate:

O consenso entre os painelistas foi claro: a IA não vai substituir advogados, mas advogados que usam IA vão substituir os que não usam. E o tempo para fazer essa transição está se esgotando rapidamente.

Como alertou Lemos em sua frase de encerramento: "Não adianta estar certo na hora errada. Não adianta acordar daqui a dois anos e falar: 'Caramba, IA é muito importante para o meu escritório', porque provavelmente nessa hora o momento vai ter passado."

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