Reino Unido autoriza 1º escritório de advocacia movido por IA | Análise
Análise

Reino Unido autoriza 1º escritório de advocacia movido por IA

Modelo pioneiro da Garfield.Law automatiza ações de cobrança e reacende debate sobre ética, regulação e o futuro da advocacia

1 de August 7h05

O Reino Unido autorizou o funcionamento do primeiro escritório de advocacia operado exclusivamente por inteligência artificial. O modelo, inédito no mundo, foi aprovado pela Solicitors Regulation Authority (SRA), órgão regulador da advocacia inglesa, e será comandado por uma empresa chamada Garfield.Law, voltada à automação de serviços jurídicos de baixo risco, como cobranças e notificações extrajudiciais.

Com a licença oficial concedida em maio deste ano, o escritório inaugura um novo capítulo no debate sobre os limites e as possibilidades do uso de tecnologias generativas no direito. A proposta da Garfield é clara: reduzir o custo de serviços jurídicos considerados repetitivos por meio de automação integral,

De acordo com o fundador, Philip Young, o objetivo é resolver questões legais simples de forma mais rápida, barata e eficiente, democratizando o acesso a serviços que, tradicionalmente, estariam fora do alcance de muitos consumidores ou pequenas empresas. A estrutura da Garfield usa um sistema próprio de IA treinado com dados jurídicos, o que inclui a redação automática de cartas de cobrança e ações civis de pequeno valor, a partir do cruzamento de informações e modelos predefinidos.

A decisão da SRA de autorizar formalmente esse modelo gerou repercussões imediatas no meio jurídico europeu e internacional. O escritório não terá advogados humanos como prestadores diretos de serviço, mas sim como responsáveis técnicos pelo desenvolvimento e monitoramento do sistema. A aprovação, segundo a SRA, se baseou no entendimento de que a empresa cumpre os princípios regulatórios exigidos — incluindo transparência, confidencialidade e dever de zelo com os clientes.

Como funciona o Garfield.Law

  • 1. Atendimento digital e automatizado:
    O usuário acessa a plataforma online e descreve sua reclamação ou problema jurídico, como disputas com fornecedores, reembolsos ou falhas em contratos.
  • 2. IA analisa o caso e gera respostas:
    Um sistema de inteligência artificial avalia a situação apresentada e oferece sugestões automáticas de resolução — como enviar notificações extrajudiciais, negociar acordos ou seguir para o tribunal.
  • 3. Intervenção advogados humanos:
    Um advogado humano supervisiona o processo e valida etapas sensíveis. O foco é na automação com supervisão jurídica.
  • 4. Acompanhamento do caso:
    A plataforma acompanha o andamento da demanda, lembrando prazos e providenciando a documentação necessária de forma automatizada.
  • 5. Cobrança por serviço e não por hora:
    O serviço é pago conforme o tipo de demanda e sua complexidade, com valores que abaixo que os praticados por escritórios tradicionais no Reino Unido.
  • 6. Atuação em causas de pequeno valor:
    O foco principal são disputas simples e de até 10 mil libras, típicas do sistema small claims track da justiça britânica.
  • 7. Conformidade com exigências da SRA:
    O sistema é obrigado a:
    Manter registros auditáveis das decisões automatizadas;
    Ter filtros contra alucinações da IA;
    Adotar políticas de não discriminação algorítmica;
    Garantir seguro profissional.

A iniciativa reabre uma série de discussões urgentes sobre os riscos éticos, técnicos e regulatórios do uso de IAs em funções antes exercidas exclusivamente por profissionais. Entre os principais pontos de atenção estão o risco de alucinações(respostas erradas ou inventadas pela IA), a reprodução de vieses discriminatórios e a falta de interpretação contextual em casos limítrofes. No Brasil, especialistas em direito analisam com cautela os efeitos de uma eventual expansão desse modelo.

Ruptura previsível — e necessária

Para André Porto Alegre, Jornalista, CEO da Law Consulting e especialista em gestão de escritórios, a criação de um escritório operado por IA era "inevitável". "Diante do encantamento da advocacia pelas possibilidades da inteligência artificial, era necessário um começo — e o Garfield.Law é exatamente isso. Ainda é cedo para avaliar resultados, mas os primeiros sinais são bons", afirma.

Ele classifica a mudança como uma evolução natural, ainda que com potencial de ruptura. "Vamos viver um momento de experimentação. Haverá iniciativas muito exitosas, outras nem tanto, mas é o tipo de movimento que os negócios da advocacia precisavam há tempos vivenciar."

Essa visão complementa - e em parte contrasta com - as análises de outros especialistas. Solano de Camargo, Sócio do Lee, Brock e Camargo Advogados e presidente da Comissão de Privacidade, Proteção de Dados e IA da OAB-SP, classificou o modelo como "automação rastaquera", enquanto Alexandre Zavaglia, presidente da Comissão de Tecnologia e Inovação da OAB-SP e coordenador do IASP TECH enxerga um avanço regulatório cauteloso.

Os desafios não são (só) tecnológicos

De acordo com Zavaglia, não há dúvida sobre o impacto da IA nos serviços jurídicos, mas o debate precisa considerar a regulação. "A grande questão é: vamos permitir que as máquinas exerçam atos típicos da advocacia? Isso não é uma escolha apenas tecnológica, é regulatória", destaca.

Ele também ressalta que o uso de IA para atividades de menor complexidade — como o modelo britânico propõe — é viável e até desejável. "Faz sentido aplicar IA aonde há grandes volumes e baixa complexidade. Mas há um limite jurídico para isso. E o desafio, no Brasil, é saber se o marco legal vai acompanhar essa evolução", explica.

Advogados despreparados para o novo cenário

André Porto Alegre critica a falta de preparo estrutural da advocacia brasileira: "A profissão só se prepara para o mérito técnico. Advogados são despreparados para gestão administrativa, financeira, de pessoas, marketing, comunicação e tecnologia. Não surpreende também que estejam despreparados para acoplar a IA em suas estruturas funcionais."

Segundo ele, os cursos de Direito no país estão atrasados em décadas. "Os conteúdos programáticos no Brasil estão defasados na ordem de 30 anos. A IA é só mais um impacto nesse cenário de total deficiência na formação dos advogados."

Solano também se preocupa com a carência de formação no âmbito tecnológico: "Muitos profissionais carecem de formação em ciência de dados e no próprio letramento básico de uso da IA no direito. A OAB já emitiu recomendações sobre IA e o Marco Legal avança, mas faltam instrumentos de fiscalização compatíveis com a velocidade do software". Porém se mostra mais otimista do que Porto Alegre em relação ao desenvolvimento dessa questão, "A combinação de educação continuada e atualizações regulatórias deve preencher essa lacuna", afirma.

IA, alucinações e ética relativizada

Além dos desafios técnicos e regulatórios, o avanço da IA no direito levanta questões éticas. "Dizem que as IAs alucinam e assumem uma criatividade incomparável na advocacia. Brincadeiras à parte, é um processo de aprendizado. Estamos só no começo dessa jornada", afirma Porto Alegre. Para ele, as questões éticas vão além da tecnologia: "Elas refletem um fenômeno de relativização que impacta todas as relações humanas, não só a advocacia."

Zavaglia concorda: "O maior risco hoje está no uso de modelos generalistas, como LLMs não treinadas com dados jurídicos confiáveis. Isso pode gerar respostas incorretas ou tendenciosas, colocando o cliente e o advogado em risco."

Camargo destaca que a licença concedida exige filtros contra citações fictícias, o registro imutável de cada interação ocorrida e supervisão contínua das atividades. Mesmo assim, vieses podem nascer dos dados de treinamento, motivo pelo qual são indispensáveis os relatórios de impacto de forma periódica. O advogado cita a experiência vivenciada por ele e aponta a participação de advogados durante o processo como imprescindível para que não haja erros: "No LBCA já utilizamos a filtragem de petições predatórias por análise dos metadados por IA, análise semântica de depoimentos trabalhistas e mapas de prova em função de decisões jurisprudenciais, sempre com advogados no comando dos processos. O desafio regulatório será separar ferramentas que potencializam profissionais de propostas que pretendem substituir advogados sem reproduzir suas salvaguardas éticas".

Sobre os riscos, Porto Alegre é pragmático: "Toda adoção tecnológica pressupõe novos riscos, que serão primeiro mensurados e depois mitigados". Ele relativiza o temor de perda de qualidade: "Não há garantia que atuações humanas assegurem qualidade. No Brasil, o mito da qualidade virou diferencial, o que sugere que ela não seja universal na advocacia".

O papel do advogado vai mudar

A experiência também levanta dúvidas sobre o papel do advogado humano nesse novo cenário e sobre como as faculdades, escritórios e entidades de classe deverão se preparar para o impacto dessa transformação. Outro ponto relevante é o potencial de abertura de precedentes: ao autorizar um modelo como esse, ainda que restrito a causas simples, o Reino Unido envia um sinal claro de que a atuação autônoma da IA no campo jurídico pode se tornar, em breve, uma realidade regulamentada — e não apenas experimental.

Na avaliação de André, a profissão jurídica precisará se reinventar. "Na história da evolução, o papel dos humanos sempre mudou com novas tecnologias. A advocacia será impactada, mas encontrará espaços — possivelmente na altíssima especialização e em novas competências."

Para Zavaglia, a tecnologia irá mudar bastante a forma de trabalhar, de resolver problemas. Ele cita a saída da máquina de escrever para o computador, com a internet, como um exemplo para a adaptabilidade da profissão. Mas atenta que mesmo com os adventos da tecnologia, o ponto central continuará sendo o Direito: "Outro dia me perguntaram o que é preciso estudar para usar IA generativa. E eu respondi: Direito. Porque quem não souber Direito, vai ficar à mercê de um conteúdo que fica muito próximo, esteticamente, de algo bem feito, mas com um risco grande de estar descolado da realidade, ou da finalidade que se pretende".

Justiça de "segunda classe"?

O surgimento do Garfield.Law, traz à tona o debate sobre o risco de criação de uma "justiça de segunda classe", voltada a causas menores ou a públicos de menor renda. Para Zavaglia, esse perigo existe, mas pode ser contornado com responsabilidade. "Se desenvolvidos com todos os cuidados éticos e entendendo essas características da tecnologia, esses modelos podem ampliar o acesso à justiça", afirma. "Simples replicações sem cuidado podem realmente levar a efeitos indesejados e desalinhados com a importância dos advogados para a sociedade."

Camargo admite que o debate é necessário, mas aponta que o Brasil já possui um modelo público mais inclusivo do que o inglês. "O Juizado Especial Cível dispensa advogados, oferece audiências rápidas, sentença simplificada e custo zero de ingresso. Nesse ponto, a experiência brasileira supera a britânica, onde o small claims track cobra uma taxa proporcional ao valor da demanda e ainda exige orientação jurídica em etapas específicas. O Garfield.Law tenta tapar essa lacuna inglesa com automação barata, mas continua sendo uma solução privada paga e, portanto, menos inclusiva do que o modelo público brasileiro.", compara. Para ele, a lição deveria vir do Sul para o Norte: "O Reino Unido poderia adotar um juizado gratuito inspirado no nosso, enquanto nós podemos observar como a SRA fiscaliza algoritmos com exigências como filtros contra alucinações e seguro profissional."

Já Porto Alegre trata o tema com maior ceticismo. "A justiça de segunda classe é uma realidade no Brasil", afirma. "Há faculdades, advogados, clientes e escritórios de segunda classe — por que não haver também uma justiça assim?" Embora veja a IA como um fator de modernização, ele acredita que sua adoção não mudará o DNA da advocacia brasileira, mas poderá ao menos "movimentar os corpos estagnados em conceitos ultrapassados e fora de contexto".

Brasil vai ignorar ou acompanhar?

Alexandre Zavaglia concorda que o Brasil deve acompanhar os movimentos internacionais, mas com cautela e respeito às especificidades locais. Ele revela que a Comissão de Tecnologia e Inovação da OAB-SP está realizando um estudo, coordenado pelo Renato Mandaliti, que analisa iniciativas similares no Reino Unido e nos Estados Unidos. "Precisamos entender essas iniciativas, acompanhar seu progresso, e iniciar esse debate. Mas com a devida cautela, como temos visto em outros países, e respeitada a realidade e a cultura local."

Para André Porto Alegre, o impacto da IA sobre o direito brasileiro é inevitável, mesmo que o setor jurídico resista. "Negar que o que acontece no mundo impacta o Brasil é um pensamento negacionista e antiglobalista. Mas a advocacia brasileira é pródiga em ser ensimesmada", avalia. Segundo ele, a regulação vai chegar — ainda que com atraso. "A IA será um acelerador de uma revisão regulatória. Mas a procrastinação das lideranças da advocacia é uma realidade — por desconhecimento, descaso ou interesses."

Já Solano de Camargo considera que a experiência britânica não oferece novidades tecnológicas para o Brasil, que já opera com automações mais avançadas sem dispensar advogados. O principal desafio seria adaptar a moldura jurídica. "O Estatuto da Advocacia impede as sociedades de integrar sócios não advogados, enquanto o Reino Unido permite as Alternative Business Structures. Em vez de copiar esse formato, faz mais sentido reforçar as diretrizes nacionais de governança algorítmica, sigilo e não discriminação, mantendo o profissional jurídico responsável pela gestão dos processos", finaliza. 

Alexandre ZavagliaAndré Porto AlegreGarfieldGarfield.LawIAOABOAB-SPSolano de Camargo