Apesar da ampliação das discussões sobre diversidade no setor jurídico e 55% dos escritórios respondentes ao Análise Diversidade & Inclusão 2025 aderirem práticas como palestras e canais de denúncia relacionados a temas de diversidade e inclusão, menos de 12% dessas bancas adotam vagas afirmativas, que seria a prática ideal para realmente mudar a estrutura das organizações. O dado levantado pela pesquisa, expõe o contraste entre o discurso presente em eventos e campanhas e a efetiva abertura de oportunidades para grupos historicamente excluídos.
Para Dione Assis, fundadora do BlackSisters in Law e sócia do Galdino Advogados, a ausência de políticas afirmativas explicita a desigualdade do setor. "A advocacia, em especial nos grandes escritórios, permanece como um espaço majoritariamente ocupado por pessoas brancas, de classes mais altas e formadas em universidades de elite. As vagas afirmativas não são apenas uma política de reparação, mas uma ferramenta concreta para garantir que profissionais negros, indígenas, pessoas com deficiência e LGBTQIA+ tenham acesso real às mesmas oportunidades", afirma.
Dione lembra o precedente das cotas raciais nas universidades públicas, que ampliaram o acesso sem queda de desempenho acadêmico e deve ser um norte para o setor jurídico. "A baixa adesão hoje não é sinal de inviabilidade, mas de resistência que, cedo ou tarde, terá de ser superada", acrescenta.
Do discurso à prática
Entre os poucos exemplos de escritórios que responderam que implementam a prática de vagas afirmativas está o Maeda, Ayres & Sarubbi Advogados. Segundo Fernanda Bidlovsky, sócia da banca, a decisão nasceu do trabalho do Comitê de Diversidade e Inclusão que viu a necessidade de aumentar a diversidade no quadro de advogados do escritório. "A partir dessas conversas, mantidas nos diferentes Subcomitês (Raça, Gênero, Pessoa com Deficiência e LGBTQIAPN+) identificamos a publicação de vagas afirmativas como uma boa prática para tornar nosso escritório mais diverso e inclusivo", explica.
Antes da implementação, cada Subcomitê discutiu e analisou os seguintes pontos:
- Melhor forma de divulgação das vagas afirmativas;
- Melhores práticas para onboarding e acolhimento das pessoas contratadas por meio de vagas afirmativas;
- Revisão dos procedimentos e protocolos de contratação;
- Preparação da equipe para condução das entrevistas;
- Sensibilização da equipe sobre temas relevantes para diversidade, equidade e inclusão (DEI), por meio de treinamentos, informativos e cartilhas).
"Revisamos exigências como proficiência em idiomas e formação em instituições específicas, além de implementar novos benefícios, como aulas de inglês e bolsas de estudo. Também preparamos a equipe de RH e realizamos treinamentos de sensibilização", detalha Bidlovsky.
Segundo ela, antes da implementação houve discussões entre sócios sobre os critérios de seleção, se as vagas seriam exclusivas ou apenas prioritárias para grupos diversos, e se haveria recortes específicos. No fim, a decisão foi manter um escopo mais amplo, aberto a pessoas de grupos social e historicamente sub-representados.
A executiva conta que não houve treinamentos formais, mas sim alinhamentos internos entre lideranças e contratantes para nivelar critérios de avaliação. O principal desafio, destaca, foi garantir que os anúncios chegassem de fato aos grupos pretendidos. "A prática só faz sentido quando conseguimos comunicar a oportunidade para além dos círculos já conhecidos", diz.
Para ela, a baixa adesão do mercado se deve em grande parte à falta de clareza sobre o que são vagas afirmativas e às diferentes formas possíveis de aplicação. "É preciso identificar internamente quais habilidades mínimas são indispensáveis e o que pode ser oferecido em formação e treinamento. Só assim será possível atrair talentos de fora dos círculos tradicionais e realmente promover inclusão", conclui Morollo.
O foco inicial da política tem sido em pessoas negras e pessoas LGBTQIAPN+, mas a sócia reforça que o desafio está na conscientização do mercado. "É preciso intencionalidade para tornar o ambiente mais diverso e conhecimento sobre como os vieses inconscientes impactam a seleção de candidatos", avalia.
Outro exemplo é o Barros Pimentel, Alcantara Gil e Rodriguez Advogados. A CEO Andréa Morollo explica que a adoção de vagas afirmativas surgiu do desejo de aumentar a diversidade em um escritório de pequeno porte, onde contratações mais esporádicas não garantiriam mudanças estruturais. "Sabíamos que incluir pessoas diversas não aconteceria de forma orgânica, teria de ser algo intencional. A realização de processos seletivos com vagas afirmativas foi a forma que encontramos de materializar essa intencionalidade", afirma.
Para Assis, garantir o acesso dos grupos historicamente excluídos, é a maior oportunidade de transformação por ser onde se encontra a maior dívida social. "No caso das pessoas negras, que compõem a maioria da população brasileira, a ausência nos escritórios é gritante — especialmente em posições de liderança. Priorizar esses grupos é atacar o maior gargalo de desigualdade que o país enfrenta".
Resistências e caminhos
Para Dione, o setor jurídico ainda enfrenta barreiras ligadas a "desconhecimento, preconceito e conservadorismo". Ela aponta que muitas lideranças tratam diversidade como tema opcional ou de marketing, e não como como um pilar estratégico de sustentabilidade do negócio. "Outros se escondem atrás do argumento de "meritocracia", ignorando que o ponto de partida de cada pessoa é desigual. Vale lembrar que as cotas nas universidades enfrentaram as mesmas críticas no início. Hoje, são política de Estado, reconhecidas até pelo STF como instrumento constitucional e indispensável. O setor jurídico está apenas repetindo um atraso que já foi superado em outras áreas", afirma.
Para ela, existem três caminhos fundamentais para ampliar a adesão dos escritórios às práticas de vagas afirmativas nos próximos anos:
- Pressão institucional - A OAB, associações de classe e até grandes clientes podem exigir práticas afirmativas de seus parceiros jurídicos.
- Exemplos concretos - Escritórios que já adotaram vagas afirmativas precisam compartilhar seus resultados e mostrar que é possível e positivo. Assim como aconteceu quando universidades começaram a divulgar os impactos das cotas raciais.
- Educação e sensibilização - Investir em formações e conversas sobre diversidade para as lideranças jurídicas, desconstruindo preconceitos e mostrando o impacto social e econômico da inclusão.
"O setor jurídico brasileiro é um dos que mais resistem a mudanças, e as lideranças de muitos escritórios ainda não compreenderam a urgência do tema. Também há uma falta de pressão institucional: ao contrário de setores corporativos, em que investidores e consumidores cobram diversidade, o mundo jurídico ainda está protegido dessas exigências".
A fundadora do Black Sisters in Law também aponta algumas soluções a curto e longo prazo que são realmente efetivas no combate à desigualdade do Brasil.
- Curto prazo: implementação de vagas afirmativas com metas claras; criação de comitês de diversidade com autonomia; programas de mentoria para talentos diversos.
- Longo prazo: revisão de critérios de promoção e liderança para incluir diversidade como métrica; criação de uma cultura organizacional que valorize diferentes trajetórias; e parcerias estruturadas com iniciativas que ampliem o acesso de grupos minorizados ao mercado jurídico.
"Se o Brasil conseguiu, em pouco mais de uma década, mudar a cara das universidades, também pode mudar a dos escritórios de advocacia", conclui Dione.