Da Inteligência Artificial à humanização: o mundo jurídico está preparado para o 5.0? | Análise
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Da Inteligência Artificial à humanização: o mundo jurídico está preparado para o 5.0?

Por Guilherme Tocci e Paulo Samico, gerente sênior global de Legal Ops na Gympass e gerente jurídico na Mondelēz International, respectivamente

13 de June de 2024 13h59

Atualmente, a palavra que resume a corrida pela inovação no mundo jurídico parece ser ‘tendência’. Não vamos mentir: é muito bom ser o ‘primeiro’ e receber os louros de ser considerado disruptivo, desbravador, uma verdadeira referência para que os demais times possam seguir adiante e se inspirem na caminhada rumo à melhoria contínua.

O problema de pensar assim é um provocar um exagerado fear of missing out (FOMO) e despertar uma cultura de ansiedade, perigosa à saúde mental e, por tabela, desenvolver inovações inócuas. Esse conceito é defendido como ‘Inovício’ e não será o tema deste artigo.

Aqui, gostaríamos de exercitar uma reflexão: onde está a sua presença? Explicamos. Nesse mundo acelerado, repleto de tecnologias, tendências e mecanismos altamente disruptivos, você tem se feito presente? Você percebe como seu time se porta, como interage entre si, como se enxerga em relação às metas? E em relação aos clientes? As metas têm sido voltadas para as pessoas e tem colocado o ser humano no centro (colegas de trabalho de outras áreas e os clientes da sua organização)?

Essas perguntas são altamente relevantes a partir do momento que se multiplicam ferramentas artificiais, como o modelo de inteligência que dá nome a esse artigo. O ser humano, a nosso ver, provavelmente não será substituído. Somente nós conseguimos nos importar, gerar valor a toda e qualquer iniciativa, redefinir prioridades com base no tom de voz, sentir o clima e, assim, desenvolver a possibilidade de uma visão holística de inúmeros fatores centrada nas pessoas.

Quando nos deparamos com o estudo da Gartner, nos pareceu uma excelente oportunidade de chamar a atenção para esse fato: a visão ‘human-centered’, ou seja, a visão centrada no ser humano. Precisamos sim olhar para as tendências, mas sempre com o viés inclinado para as pessoas. Se assim não for, jamais conseguiremos sair da indústria 4.0 e não evoluiremos para o próximo nível enquanto setor jurídico.

Segundo Nitin Mittal, Líder global de Inovação de Inteligência Artificial Generativa da Deloitte, a indústria 5.0 vai ser alimentada por mentes e não por máquinas. O executivo ensina que toda mudança foi acelerada pela pandemia e é muito maior do que um slogan de marketing. As coisas já estão rápidas e tudo vai acelerar ainda mais.

Não basta só mudar o número para ser ‘cool’. A Revolução 5.0 trata-se de um verdadeiro caminho para alinhar as capacidades humanas e as máquinas, considerando o bem-estar dos colaboradores, o meio-ambiente e todo um engajamento da comunidade. Será necessário, ainda, garantir nessa revolução maior estabilidade social em meio à conquista do desenvolvimento sustentável, sem esquecer de buscar novos viabilizadores de produtividade e de criatividade para garantir o esperado crescimento. Considerando o hiato cada vez menor entre as revoluções, a próxima década promete ser promissora - não só por causa da Inteligência Artificial, mas também - e principalmente também - pela evolução da interação humana com ela.

Sem mais delongas, passamos a analisar o relatório da Gartner. Segundo o relatório, 175 executivos jurídicos, de compliance e de privacidade de diferentes indústrias foram entrevistados para que expusessem suas prioridades para o ano. São elas:

42% Expandir o impacto jurídico e do compliance nas organizações

40% Fortalecer os programas de gerenciamento de riscos com terceiros

39% Desenvolver uma estratégia para acompanhar os novos requisitos regulatórios

37% Garantir um balanço adequado entre o risco e os benefícios comerciais

30% Criar treinamentos personalizados para garantir a conformidade junto aos colaboradores

O relatório está bem completo. Retrata sobre o que os líderes encaram como grandes desafios e leva em consideração inclusive funções de quem exerce função direta no Jurídico corporativo, mas também em outras posições que orbitam a área, como profissionais de Riscos e Controles, Estrategistas, Legal Operations, criadores de novos processos e, sobretudo, quem lida com a consciência corporativa em prol da construção de uma cultura organizacional sólida, os profissionais de RH.

Analisando os principais desafios e as prioridades elencados acima, refletimos sobre a característica humana:

  • O impacto ESG que a organização visa atingir é compatível com o orçamento empreendido? Quando não, não adianta postar no LinkedIn sobre iniciativas ESG de fachada, Greenwashing é uma prática perigosa que pode causar um grande dano reputacional.
  • Nos contratos com os fornecedores, ao menos estão considerando o reajuste pela inflação? Perceba que quando não, quem sofre são as pessoas terceirizadas.
  • Existem profissionais no Jurídico dedicados - ou com parcela considerável do tempo - inseridos de verdade na estratégia digital da organização, além dos famosos ‘comitês’? Acumular muitas funções pode culminar em perda de qualidade e é importante ter alguém do Jurídico com tempo disponível para suportar tais iniciativas e o letramento digital deve ser estimulado em toda a organização.
  • Os encontros com times jurídicos de outras empresas - o famoso benchmarking - estão sendo estimulados? Há um KPI nesse sentido? Entender o que outras equipes estão fazendo vai gerar insights e suportar o  encorajamento para tocar projetos de inovação. O contato com outras pessoas precisa ser estimulado e materializado em novas ações.
  • Os treinamentos mais relevantes estão sendo realizados em grupo? Pode parecer loucura, mas não é, acredite. Treinamentos presenciais podem ser mais interativos, mas ainda que as organizações estejam mais seletivas em quando realizá-los, essa prática jamais pode ser abandonada.

A pesquisa da ACC - Association of Corporate Counsel tem maior abrangência. Entrevistando 669 pessoas, que compõem 20 indústrias e espalhadas por 31 países, a entidade que agora possui um capítulo no Brasil elege 10 descobertas-chave, listadas abaixo:

  1. Os líderes jurídicos continuam a enfrentar pressões enormes para fazer ‘mais com menos’
  2. Regulamentações e novas fiscalizações geram preocupação na liderança jurídica
  3. Os vazamentos de dados são a maior ameaça relacionada aos dados que a liderança jurídica deseja mitigar em 2024
  4. Os líderes jurídicos classificam a eficiência operacional como a sua principal iniciativa estratégica
  5. A maioria dos líderes jurídicos registrou um aumento na carga de trabalho durante o ano passado
  6. A maioria dos líderes jurídicos supervisiona pelo menos três funções comerciais adicionais além da área jurídica
  7. A maioria dos líderes jurídicos acredita que a inteligência artificial (IA) terá um impacto positivo na profissão
  8. Os líderes jurídicos desejam que seus funcionários desenvolvam maior visão empresarial e de negócios
  9. Três em cada quatro líderes jurídicos estão envolvidos na liderança da estratégia ESG da sua organização
  10. O título de Diretor Jurídico está se tornando mais comum

O item 4 chama atenção, pois mais uma vez indiretamente Legal Operations deixa de ser uma exceção e passa a ser regra. Já os tópicos 5 e 6 revelam a importância do investimento em pessoas, para que seja alcançado o equilíbrio entre vida e trabalho. Nitidamente há uma sobrecarga em comparação aos últimos anos.

Precisamos estar presentes. Nenhuma das reflexões ou dos problemas elencados acima são resolvidos com ausência. Estar conectado, de forma mental e emocional com o propósito e em relação às pessoas que nos ajudam a construir metas é algo fundamental para dar o passo que precisamos dar rumo ao futuro.

Ninguém aguenta viver em meio ao caos 100% do tempo. Ninguém aguenta mais esse ambiente com trabalho em excesso, distante do discurso de saúde mental presente somente nos e-mails da área de Saúde Ocupacional, mas longe da realidade das pressões pela entrega dos projetos. Também não podemos somente focar no bem-estar, afinal as entregas precisam ser feitas. Como atingir o equilíbrio no meio disso tudo, focando nas pessoas?

Abílio Diniz tem uma famosa citação que precisa ser lembrada em memória ao seu legado: "Não existe fórmula secreta. Somente a organização e a disciplina permitem que uma pessoa desempenhe todos os seus papéis e dê conta de todas as suas atividades de forma equilibrada e harmoniosa". E no mundo jurídico não é diferente.

Guilherme Tocci é ávido por inovação na prática do direito, teve uma carreira não tradicional no mundo jurídico. É Gerente Sênior Global de Legal Ops na Gympass e Cofundador da CLOB (Comunidade Legal Ops Brasil). Candidato ao MBA pela FGV e formado em Direito pelo Mackenzie. Trabalhou em legaltech e atuou em posição jurídica na Huawei e Demarest Advogados.

Paulo Samico é idealizador e coordenador da obra coletiva "Departamento Jurídico 4.0 e Legal Operations". Graduado em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da UFRJ, pós-graduado em Processo Civil e Direito Regulatório pela UERJ. Foi pesquisador acadêmico na FGV Conhecimento, coordenador jurídico e legal business partner na BAT Brasil (Souza Cruz) por 7 anos. Autor de diversos artigos publicados em periódicos jurídicos. Membro-fundador e coordenador do núcleo de Departamentos Jurídicos da AB2L. Atualmente é coordenador da coluna "Legal & Business" do JOTA, professor da Future Law e gerente jurídico na Mondelēz International, na posição de legal counsel & business partner para supply chain e inovação aberta.

¹Você pode encontrar o estudo da Gartner em <https://www.gartner.com/en/legal-compliance/trends/top-priorities-legal>. Acesso em 07/04/2024.

²"Industry 5.0 will be fueled by minds, not just machines", artigo escrito por Mike Walsh e Nitin Mittal. Disponível em <https://www2.deloitte.com/content/dam/Deloitte/us/Documents/consulting/us-industry5.0-will-be-fueled-by-minds.pdf>. Acesso em 07/04/2024.

³A "lavagem verde" é considerada uma estratégia de marketing, ou seja, a promoção de discursos e ações tidas como sustentáveis mas que, ao fim do dia, não se sustentam na prática. Definição disponível em <https://www.infomoney.com.br/economia/greenwashing-o-que-e-e-por-que-essa-palavra-pode-impactar-seus-investimentos-e-suas-compras/>. Acesso em 07/04/2024

⁴Maior detalhamento em <https://www.forbes.com/sites/forbesbusinesscouncil/2023/09/08/personnel-training-why-its-needed-and-how-to-organize-it/?sh=a19064c1bcd9>. Acesso em 07/04/2024.

⁵Disponível em <https://valor.globo.com/carreira/noticia/2022/09/08/treinos-presenciais-ficam-mais-seletivos.ghtml>. Acesso em 07/04/2024.

⁶Veja o documento na íntegra em < https://www.acc.com/sites/default/files/2024-01/ACC_2024_Chief_Legal_Officers_Survey_Key_Findings.pdf?_sm_au_=iVVq0VFMnNHDjkLR48RsKKHM7sFTF>. Acesso em 07/04/2024.

⁷Descubra como participar da ACC Brasil por meio do endereço < https://www.acc.com/chapters-networks/chapters/brasil>. Acesso em 07/04/2024.

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