O Dr. Ary Oswaldo Mattos Filho foi muitas coisas e fez muito também. A advocacia, em todas as suas formas - na prática e no ensino -, perde com sua morte. O Brasil perde um grande pensador do Estado moderno. Eu perco uma referência.
Ary Oswaldo Mattos Filho esteve envolvido, se não em todas, em quase todas as iniciativas importantes que moldaram a economia atual do Brasil. De juiz do Tribunal Administrativo de Impostos e Taxas do Estado de São Paulo (TIT) a presidente da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e integrante do Conselho Monetário Nacional, Ary - como gostava de ser chamado - teve papel ativo em todas as iniciativas de modernização do Estado brasileiro, institucional e operacionalmente.
Presidiu a primeira comissão de estudos sobre a reforma fiscal, instituída em 1992, no final do governo Collor de Mello. Essa comissão foi o embrião das discussões sobre reforma tributária no Brasil - um debate que atravessou décadas e cujas primeiras medidas começarão a entrar em vigor em 2026. Ary também integrou a comissão que delineou o Programa Nacional de Desestatização, iniciado no governo Collor e continuado no governo Itamar Franco.
Apaixonado por educação, além de cuidar muito bem da própria formação, Ary fundou o curso de Direito da Fundação Getulio Vargas de São Paulo, escola que dirigiu até 2011 e da qual era professor sênior, pesquisador e membro do conselho diretor até ontem, dia do seu falecimento. Nem por isso deixou de empreender. Em 1992, juntou-se a outros três advogados para fundar o escritório que leva seu nome: Mattos Filho Advogados (à época, Mattos Filho, Veiga Filho, Marrey Jr. e Quiroga Advogados). Ary gostava e tinha orgulho de lembrar que, entre os quatro sócios, três haviam presidido a CVM - uma vantagem competitiva e tanto.
Tive o privilégio de conhecê-lo em 1989, quando cheguei novata, repórter com pouco tempo de profissão, em Brasília. Eu começava a cobrir economia no jornal O Estado de S. Paulo, o "Estadão". Ary era um advogado que sabia das coisas - e me ensinou muito. Foi por causa dele que me apaixonei pelo tema dos tributos e cheguei a encontrar beleza em um assunto que a muitos apavora.
Rapidamente, Dr. Ary Oswaldo se tornou apenas Ary e foi uma fonte próxima e importante ao longo de toda a minha trajetória profissional. Nos mais de 20 anos em que trabalhei em veículos de comunicação, nunca extrapolamos os limites da relação fonte-jornalista, mas Ary nunca deixou de me atender. Se podia falar, falava. Se não podia, dizia claramente que não era possível. Mais importante ainda: cumpria os combinados. Se prometia falar quando pudesse, ele mesmo ligava para dar a notícia. Esse tipo de relação, para um jornalista, é inestimável.
Quando decidi empreender na Análise Editorial, junto com Eduardo Oinegue e Alexandre Secco, não tive dúvida: fui me aconselhar com Ary. Ali percebi que havíamos nos tornado amigos. Anos depois, vasculhando coisas antigas da família, encontrei o livro de formatura do meu pai, nas Arcadas do Largo de São Francisco, a Faculdade de Direito da USP. Pela primeira vez, decidi olhar com cuidado o livro todo. Eis que encontro Ary Oswaldo se formando na turma do meu pai. Foi incrível - um fato da vida que selou nossa amizade.
Ary não se lembrava do meu pai, que cursou a faculdade no período noturno, pois já casado e comigo nascida, precisava trabalhar durante o dia. Mas ficou tão emocionado quanto eu ao saber que haviam sido contemporâneos.
Meu pai e Ary tinham em comum o gosto pelo estudo, pela leitura, pela cultura, pelo saber. Tinham em comum o apreço pelas leis, pela teoria que embala o Direito e como tudo isso junto tem o condão de formatar a sociedade. Como Ary, meu pai também se dedicou ao ensino das leis e do pensar jurídico. Como Ary, meu pai também tinha um gosto especial pelos tributos, pelas regras que regem o comércio e as companhias, em particular as sociedades anônimas.
Meu pai viveu pouco. Faleceu aos 47 anos. Ary viveu 85. Nesse sentido, teve mais sorte que meu pai. Se não pôde ver concretizado o Brasil com que sonhava, sabia ter contribuído intensamente para a transformação possível, que trouxe o país até aqui.
Hoje é um dia triste. Ainda que não fôssemos amigos próximos, vou sentir falta do Ary. Era bom, dava conforto saber que ele estava por ali, sempre disposto a me atender, se eu precisasse. Mas não posso terminar este texto sem contar pelo menos uma boa história do Ary. Foi dele a ideia, posta em lei e sancionada pelo presidente Fernando Collor de Mello, de acabar com a circulação de títulos ao portador. O artífice se divertia contando que, muito provavelmente, Collor não tinha muita ideia do alcance da medida. Afinal, foi ela que, dois anos mais tarde, permitiria a identificação de quem pagou pelo Fiat Elba utilizado pela então primeira-dama Rosane Collor - prova importante no processo de impeachment do presidente da República.
Deixo aqui meu adeus a essa pessoa que foi e fez tanto pela advocacia e pelo Brasil, e que, para mim, foi acima de tudo uma referência fundamental. Meus sentimentos à família, aos amigos próximos e a todos que também tiveram em Ary Oswaldo Mattos Filho uma referência. Que ele esteja em bom lugar e possa descansar em paz.
Silvana Quaglio diretora-presidente e publisher da Análise Editorial. Jornalista com mais de 20 anos de experiência, foi repórter nos veículos VEJA, O Globo e BBC, além de repórter, coordenadora e colunista no jornal Folha de S. Paulo e editora no jornal Valor Econômico.

