Durante o encontro do BRICS no Rio de Janeiro, os chefes de Estado de Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul propuseram um novo marco global para garantir remuneração a autores e detentores de direitos cujo conteúdo é utilizado no treinamento de sistemas de inteligência artificial (IA). Um rascunho de comunicado diplomático, obtido pela Reuters, afirma que o bloco "exige pagamento justo por conteúdos utilizados em treinamento de sistemas de IA" e defende a criação de salvaguardas globais para evitar coleta excessiva de dados sem remuneração adequada.
Limites jurídicos e alcance técnico
Essa pauta surge em resposta à preocupação com os grandes conglomerados de tecnologia — especialmente de países desenvolvidos — que utilizam dados públicos ou privados para treinar modelos de IA sem licenciamento ou compensação financeira. Para a sócia do Daniel Advogados, pesquisadora do IDP e professora convidada da Mackenzie, Nuria López, a proposta do BRICS representa um "posicionamento político relevante" e busca equilibrar interesses públicos e privados, promovendo transparência, remuneração justa e proteção à privacidade. Ela ressalta que, apesar de importantes, as medidas enfrentariam "óbices técnicos e jurídicos", especialmente quando se trata de exigir transparência nos parâmetros algorítmicos.
Para Cedrick Sinkandar, consultor do NHM Advogados, o movimento do BRICS é "incipiente", mas importante ao sinalizar a necessidade de contextualizar normas clássicas de propriedade intelectual diante dos avanços da IA. Ele lembra que a legislação internacional sobre o tema é antiga, amplamente harmonizada, e um raro exemplo de êxito do direito internacional. "Mais nações precisam participar do debate", defende.
Governança digital e uso de dados
Entre os pilares da proposta estão o licenciamento justo, o uso autorizado de dados e a transparência nos sistemas de IA. López afirma que a iniciativa do BRICS propõe uma reconfiguração política da governança digital, buscando equilíbrio entre propriedade intelectual, interesse público e sustentabilidade. Já Antonio Curvello, também sócio do Daniel Advogados, alerta que o uso de obras protegidas por IA ainda opera em uma "zona cinzenta", pois a correlação entre dados de entrada e geração de conteúdo nem sempre é rastreável. Sinkandar complementa que identificar com precisão quais direitos o treinamento empregou exige um esforço extremamente difícil — o que pode gerar tanto remunerações indevidas quanto omitir direitos reais.
Desafios técnicos e riscos regulatórios
A complexidade técnica dos sistemas de IA também desafia os mecanismos jurídicos. "Algoritmos auto supervisionados operam com opacidade, mesmo para seus desenvolvedores", explica López. Filipe Fonteles Cabral, sócio do Dannemann Siemsen, lembra que o modelo europeu de exceção para mineração de dados (TDM exception) no EU AI Act teve que ser revisto, justamente por falhas em sua aplicação. Ele defende que uma regulação prematura pode gerar insegurança jurídica e comprometer o desenvolvimento da tecnologia. Nesse sentido, Cedrick Sinkandar também destaca que a IA, como ferramenta, "não é criativa" — sempre haverá um humano responsável pela produção, cabendo à jurisprudência adaptar sua interpretação às novas formas de criação assistida.
Debate legislativo no Brasil
No plano regulatório, o Brasil discute o PL 2338/23, conhecido como Marco Legal da IA. O Senado já aprovou o PL 2338/23, e a Câmara dos Deputados analisa o texto atualmente. Para Antonio Curvello, o projeto pode trazer maior segurança jurídica tanto para autores quanto para desenvolvedores. Fonteles acredita que o país tem histórico positivo na legislação de tecnologias, como no Marco Civil da Internet e na LGPD, mas alerta para o risco de regular prematuramente um tema ainda em maturação. Sinkandar também ressalta que, em casos evidentes de infração, como plágio musical por IA, a legislação atual já oferece instrumentos suficientes. No entanto, ele destaca que esses casos exigem entendimento técnico e jurisprudência atualizada para garantir a aplicação correta da lei.
Inovação x proteção de direitos
A exigência de remuneração por uso de dados em IA levanta, ainda, uma tensão entre proteção de direitos e fomento à inovação. Para Sinkandar, as soluções baseadas em IA "podem assistir o ser humano em quase todas as atividades" — da produção artística à contabilidade, engenharia e ciência. O equilíbrio entre inovação e proteção dependerá do grau de organização de cada setor da sociedade. Fonteles adverte que, em países em desenvolvimento, restrições excessivas podem limitar o avanço tecnológico e dificultar a criação de bases de dados locais. Para ele, essas bases são essenciais para desenvolver modelos de IA mais representativos da realidade nacional. "O protecionismo tende a criar ferramentas limitadas em alcance e tecnologia", observa.
Próximos passos
A proposta do BRICS será encaminhada à ONU e à OMC, podendo influenciar tratados futuros ou revisões em acordos como o TRIPS. No Brasil, o debate em torno do PL 2338/23 avança com envolvimento de diversos setores da sociedade civil e empresarial. Os especialistas recomendam que os formuladores de políticas adotem cautela ao regular a IA no campo da propriedade intelectual. Eles defendem ampla participação no processo para evitar riscos à inovação e aos direitos dos criadores. "Melhor nenhuma regulação do que uma ruim que comprometa o interesse nacional", conclui Fonteles.