O novo contrato de patrocínio do Flamengo com a Betano, casa de apostas que também é a patrocinadora master de competições nacionais de futebol, como a Copa do Brasil e o Campeonato Brasileiro trouxe à tona uma discussão delicada: até que ponto esse tipo de parceria coloca em risco a integridade e a credibilidade do futebol brasileiro? A questão surge em um momento de maior atenção a casos de manipulação de resultados e à pressão por governança no setor esportivo.
Brechas na legislação
A regulamentação do mercado de apostas de quota fixa avançou no Brasil com a Lei nº 14.790/2023. A norma definiu regras de licenciamento, publicidade e políticas de integridade. Apesar disso, especialistas apontam que a legislação ainda deixa lacunas importantes.
Para João Pedro Drumond, auditor do Tribunal de Justiça Desportiva de São Paulo e co-fundador do Drummond & Nogueira Advocacia, o principal ponto em aberto é a ausência de restrição ao chamado "patrocínio cruzado": "a principal brecha reside na ausência de uma proibição explícita ao patrocínio cruzado - quando a mesma empresa apoia a entidade organizadora do campeonato e um dos clubes participantes". Para ele, "a lei focou no conflito de interesse na figura da pessoa física do controlador, mas não tratou desse conflito estrutural e aparente na relação comercial".
Já a advogada Daniela Poli Vlavianos, sócia do escritório Árman Advocacia, destaca que o arcabouço jurídico permanece fragmentado. "A legislação brasileira ainda é incipiente e não trata de forma clara os contratos de patrocínio entre casas de apostas e entidades esportivas. Esse vácuo permite a multiplicação de contratos sem critérios uniformes, principalmente no que se refere a potenciais conflitos de interesse e à transparência. A regulação específica sobre integridade esportiva, compliance, limites de atuação das patrocinadoras nas decisões dos clubes ou entidades esportivas ainda é escassa", afirma.
Quando o risco se torna evidente
A coexistência de patrocínio ao clube e à competição pela mesma casa de apostas não configura, por si só, conflito de interesses ilegal ou vedado. Isso ocorre porque não existe norma expressa nesse sentido. Ainda assim, especialistas alertam para os riscos potenciais desse tipo de relação.
Drumond chama atenção para o fluxo de informações privilegiadas. "Um patrocinador de campeonato pode ter acesso a dados não públicos, como relatórios internos ou informações de organização, o que exige barreiras contratuais rigorosas em conformidade com a LGPD", explica.
Na mesma linha, Vlavianos observa que a percepção de conflito de interesses se acentua nos seguintes casos:
- Patrocínio exclusivo (quando apenas um clube recebe verba expressiva de uma patrocinadora que também detém direitos sobre a competição);
- Discrepância nos valores e condições contratuais entre clubes patrocinados;
- Situações de suspeita de manipulação de resultados;
- Acesso privilegiado a informações estratégicas dos clubes ou da organização do campeonato.
Ela destaca que, "a ausência de critérios públicos de isonomia e de fiscalização por órgãos independentes contribui para agravar essa percepção de conflito, podendo afetar a credibilidade do sistema como um todo".
O limite entre marketing e integridade esportiva
O marketing esportivo é considerado vital para a sustentabilidade financeira do futebol. Mas onde termina a promoção legítima e começa o risco à integridade da competição?
Para Drumond, o limite está na preservação da incerteza do resultado esportivo. Ele cita a Lei Geral do Esporte (Lei nº 14.597/2023) e o Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD) como mecanismos que buscam impedir abusos. "O patrocinador deve ser parceiro comercial, não ator com poder de influência nos bastidores da competição", afirma.
Vlavianos reforça a importância do princípio da isonomia entre competidores, previsto na Constituição. Ela afirma que o marketing esportivo é lícito e relevante para a sustentabilidade financeira do esporte, mas não pode:
- Comprometer a imparcialidade dos resultados;
- Influenciar decisões técnicas ou de arbitragem;
- Permitir que o patrocinador atue direta ou indiretamente na gestão das entidades desportivas;
- Ter cláusulas que vinculem desempenho em campo a bônus que possam gerar incentivo à manipulação.
Esse equilíbrio deve ser fiscalizado por órgãos como o Ministério do Esporte, as federações e o Tribunal de Justiça Desportiva, mas a fiscalização esbarra na pouca normatização específica para essas situações.
O que mostra o cenário internacional
O debate brasileiro não acontece de forma isolada. Experiências internacionais oferecem modelos distintos de enfrentamento da questão.
Segundo Drumond, o Brasil caminha de forma semelhante ao Reino Unido, onde o setor é regulado com rigor e sob supervisão da Gambling Commission. Já a Itália e a Espanha adotaram medidas restritivas, proibindo a publicidade e o patrocínio de casas de apostas em eventos esportivos.
Vlavianos acrescenta que o Brasil está atrasado em relação a essas jurisdições. "Enquanto a Premier League já anuncia a proibição de patrocínios de apostas na parte frontal das camisas dos clubes (o principal espaço) a partir da temporada 2026/2027, o Brasil vive uma explosão de contratos sem regulação efetiva que limite ou fiscalize padrões de integridade. A ausência de agência reguladora específica agrava essa lacuna", aponta.
O papel do compliance dos clubes
Na ausência de regras mais rígidas, cabe aos clubes adotar medidas de proteção jurídica e reputacional.
Drumond recomenda que contratos de patrocínio incluam cláusulas de não-interferência, de integridade e de rescisão em caso de fraude ou manipulação. Além disso, defende a implementação de códigos internos que proíbam atletas e dirigentes de apostar, bem como canais de denúncia seguros para relatos de irregularidades.
Vlavianos complementa que a transparência contratual e auditorias externas podem mitigar riscos. "É essencial que os clubes publiquem os termos gerais dos contratos, dentro dos limites do sigilo comercial, e se alinhem a boas práticas internacionais de governança", sugere.
Betano responde: "Não enxergamos lacuna regulatória"
Em entrevista, Ricardo D'Ottaviano, Diretor Jurídico Brasil da Kaizen Gaming Brasil, empresa proprietária da marca Betano, contrapõe as críticas dos especialistas sobre lacunas na regulamentação. Para o diretor jurídico da Betano, a empresa opera em total conformidade com a legislação vigente e adota práticas rigorosas de compliance para garantir a integridade esportiva.
Sobre a suposta lacuna regulatória, D'Ottaviano é categórico: "Não enxergamos qualquer lacuna regulatória. Como uma empresa regularmente constituída no Brasil e com licença obtida perante a Secretaria de Prêmios e Apostas, subordinada ao Ministério da Fazenda, fomos a primeira casa de apostas a nos filiar ao CONAR, por entender que eles são o órgão competente para regulamentar as melhores práticas de publicidade para o setor e seguimos à risca o estabelecido no Anexo X."
O executivo defende que o principal desafio atual não são novas regulamentações, mas sim o combate ao mercado ilegal. "A regulamentação atualmente existente já endereça os principais pontos para as operadoras licenciadas. Desta forma, entendemos que o principal ponto a ser priorizado pelo Legislativo e órgãos reguladores neste momento é o combate ao mercado ilegal, que ainda representa aproximadamente 51% do setor, gerando evasão fiscal e falta de informação e proteção aos consumidores e à sociedade em geral."
Contratos independentes e transparência
Sobre a questão do patrocínio cruzado - quando a mesma empresa patrocina clubes e competições -, D'Ottaviano explica que os contratos são completamente independentes. "Nossos contratos de patrocínio com clubes e competições são completamente independentes, focados em entregas comerciais e visibilidade e não dão à Betano qualquer tipo de acesso ou influência sobre as operações de cada um."
O diretor jurídico enfatiza que a empresa preza pela imprevisibilidade dos resultados: "Para nós, como uma empresa que preza pela transparência no setor esportivo, a imprevisibilidade do resultado e a lisura da competição são fundamentais. Por essa razão, a Betano faz parte de entidades de monitoramento da integridade esportiva, como a International Betting Integrity Association (IBIA), que atuam de forma independente para detectar e reportar qualquer movimentação suspeita."
Práticas robustas de compliance
Questionado sobre as práticas de compliance exigidas nos contratos de patrocínio, D'Ottaviano destaca que a Kaizen Gaming, grupo multinacional ao qual a Betano pertence, mantém padrões rigorosos globalmente. "A Kaizen tem regras bastante robustas em seus contratos de patrocínio não apenas para clubes brasileiros, mas para todos os clubes que patrocina nos diferentes países em que atua. Podemos mencionar, como exemplo, cláusulas de integridade e anticorrupção, prevenção à lavagem de dinheiro, Anti Bribery, entre outras."
O executivo rejeita a ideia de que as parcerias possam comprometer a integridade esportiva: "Como citamos anteriormente, não vemos como qualquer parceria poderia influenciar ou comprometer de alguma forma a integridade esportiva de uma competição."
Combate à manipulação de resultados
Sobre o enfrentamento à manipulação de resultados, D'Ottaviano posiciona as casas de apostas como vítimas, não como facilitadoras. "Nosso principal foco para proteger a marca é a transparência e a proatividade. É importante deixar claro que as casas de apostas são vítimas em qualquer caso de tentativa de manipulação de resultados."
Ele explica que são as próprias empresas que identificam atividades suspeitas: "São as próprias empresas que identificam qualquer atividade suspeita e atuam em estreita colaboração com as autoridades e federações para reportar eventuais irregularidades e fornecer informações para as investigações, quando solicitado pelas autoridades."
A Betano mantém protocolos específicos para detectar irregularidades. "A detecção de potencial manipulação de resultados de jogos se baseia em uma estrutura organizada e orientada por dados, gerenciada pela nossa equipe especializada em Integridade de Apostas Esportivas. Essa estrutura é continuamente aprimorada com base na experiência operacional, nas práticas internacionais em constante evolução e nos dados históricos de casos suspeitos previamente confirmados."
Publicidade como diferencial legal
Sobre as restrições à publicidade de apostas adotadas em outros países, D'Ottaviano defende uma posição contrária: "Acreditamos que a publicidade tem um papel fundamental ao separar empresas regulamentadas de operações ilegais. Restringir a publicidade pode levar ao crescimento do mercado ilegal, como já aconteceu em outros países."
O diretor jurídico conclui com os planos de expansão da empresa no patrocínio esportivo brasileiro: "Queremos ser o maior patrocinador do esporte brasileiro. Isso passa por patrocínios de campeonatos e clubes, ampliação dos espaços de práticas esportivas e ações sociais que permitam com que cada vez mais pessoas se exercitem."
Credibilidade em jogo
O tema ganha relevância extra em um momento de forte escrutínio sobre o futebol brasileiro. O setor ainda sente os reflexos da operação Penalidade Máxima. A investigação apurou manipulação de resultados com participação de jogadores e apostadores ligados à chamada Máfia das Apostas.
Para Vlavianos, esse contexto agrava os riscos: "a concentração de patrocínios nas mãos de poucas empresas do setor, muitas vezes atuando em clubes e campeonatos ao mesmo tempo, contribui para a erosão da confiança pública". Drumond ressalta que a questão vai além da legalidade. "Quando o patrocinador do campeonato é o mesmo de um dos principais competidores, cada decisão passa a ser vista com suspeita. O desafio agora é demonstrar compromisso extraordinário com governança e transparência, sob pena de comprometer ainda mais a confiança do torcedor", conclui.