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Entenda como funciona o financiamento de litígios no Brasil

Prática ainda não regulamentada no país, o litigation finance atrai investidores e escritórios de advocacia ao viabilizar ações de alto custo e reequilibrar forças em disputas complexas

16 de July 13h

O financiamento de litígios, também conhecido como litigation finance, começa a ganhar corpo no mercado jurídico brasileiro. Já consolidado em países como Estados Unidos, Reino Unido e Austrália, esse mecanismo permite que um terceiro financie uma disputa judicial ou arbitral em troca de uma participação no valor eventualmente obtido. A modalidade tem sido adotada por empresas em busca de recursos para ações estratégicas e por escritórios que veem nela uma alternativa para impulsionar causas complexas.

No Brasil, o setor ainda opera sem regulamentação específica, apoiando-se na autonomia contratual das partes e em princípios gerais do Direito. Ainda assim, sua adoção cresce no contencioso empresarial, em especial na arbitragem, onde os custos processuais costumam ser elevados. Escritórios de advocacia, fundos de investimento e plataformas especializadas já começam a estruturar operações de financiamento com base em boas práticas inspiradas em experiências internacionais.

Além de representar uma alternativa de fôlego financeiro, o litigation finance também se apresenta como ferramenta de gestão de risco e estratégia jurídica. Empresas que não desejam imobilizar capital em processos longos enxergam na modalidade uma forma de monetização de ativos judiciais. Os financiadores, por sua vez, avaliam cuidadosamente a probabilidade de êxito e o valor envolvido antes de firmar contrato.

Por isso, consultamos especialistas que atuam diretamente com o tema para explicar como o financiamento de litígios tem operado no país, os principais desafios regulatórios, as experiências em arbitragem e as perspectivas para o futuro da prática.

Como funciona o financiamento de litígios

O financiamento de litígios, também conhecido como litigation finance, é um mecanismo pelo qual um terceiro, alheio à disputa, fornece recursos financeiros para cobrir os custos de um processo judicial ou arbitral. Em troca, o financiador recebe um percentual do valor eventualmente obtido pela parte financiada em caso de sucesso na demanda. Conforme explica Bianca Mendes Pereira Richter, professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie, a estrutura fundamental envolve o financiador viabilizando a ação e sua continuidade, e a parte restituindo o montante acrescido de remuneração apenas se houver uma decisão favorável.

No Brasil, apesar de não haver uma regulamentação específica para o tema, a prática tem se desenvolvido com base na autonomia privada das partes. Guilherme Setoguti, sócio do Monteiro de Castro, Setoguti Advogados e Presidente da Associação Brasileira de Special Situations e Litigation Finance, destaca que seu escritório já atuou em diversas operações, representando tanto as partes financiadas quanto as financiadoras. Arystóbulo de Oliveira Freitas, sócio do Arystóbulo Freitas Advogados, corrobora que o financiamento de litígios tem sido cada vez mais utilizado como instrumento de equilíbrio de forças econômicas e financeiras em processos judiciais e arbitragens.

Empresas intermediárias, como fintechs e empresas de investimento, frequentemente atuam como elo entre os litigantes e os fundos de investimento dedicados a esse propósito. Esses fundos aportam recursos ou assumem riscos do litigante (como pagamento de custas e honorários de sucumbência) e, em contrapartida, recebem uma cessão de direito ou parte do resultado do litígio. O financiamento pode ocorrer tanto antes do ajuizamento da ação ou início da arbitragem quanto no curso dessas demandas. As motivações para buscar esse tipo de financiamento incluem a necessidade de antecipar recursos provenientes do resultado da demanda ou a busca por expertise de outras empresas e escritórios de advocacia para aumentar as chances de sucesso.

Avanços e entraves na regulação

A falta de uma legislação específica ainda é apontada como um dos principais desafios para a consolidação do setor no Brasil. Bianca Richter observa que a ausência de regras claras e a escassez de precedentes judiciais aumentam a insegurança jurídica, especialmente no que se refere a conflitos de interesse e validade contratual. Em sua visão, essa lacuna pode limitar o crescimento do mercado. Guilherme Setoguti acrescenta que, por ora, apenas centros arbitrais disciplinam alguns aspectos do financiamento, como a obrigação de informar a existência do contrato e a identidade do financiador. Para preencher o vácuo normativo, a Associação Brasileira de Special Situations e Litigation Finance, presidida por ele, prepara um Manual de Boas Práticas com base em experiências de países como Reino Unido e Austrália.

Eduardo Terashima, sócio da área de arbitragem do NHM Advogados, lembra que o Tribunal de Justiça de São Paulo já reconheceu a validade de contratos de financiamento de litígios, reforçando o argumento de que a prática não é ilegal, ainda que careça de normatização. Ele acredita que a regulação deve surgir com o tempo, sobretudo por parte de órgãos como CNJ e OAB, para garantir a transparência e mitigar riscos éticos.

Bianca Richter também aponta preocupações inspiradas na Diretiva Europeia 2020/1828, que trata do financiamento de ações coletivas por terceiros. Entre elas, o risco de influência indevida do financiador, o estímulo a ações movidas por fins lucrativos e o conflito entre objetivos econômicos e direitos difusos. Ainda assim, ela argumenta que, do ponto de vista do acesso à Justiça, o litigation finance tem efeito positivo, especialmente em ações de pequeno valor com danos dispersos. "Sob a perspectiva dos lesados, o financiamento por terceiros viabiliza o acesso efetivo à justiça por meio da tutela coletiva em situações que envolvem danos concorrenciais de pequena monta e dispersos, quando o Estado não consegue superar os obstáculos econômicos à plena efetivação do direito de acesso ao Judiciário. Esse tipo de financiamento reequilibra a força entre as partes, na medida em que facilita a propositura de ações que não seriam ajuizadas sem tal suporte e proporciona melhores condições processuais ao adequado desenvolvimento da demanda", afirma.

Arbitragem, ética e cautelas contratuais

A arbitragem tem se mostrado terreno fértil para o litigation finance, devido aos valores elevados e à previsibilidade dos procedimentos. Bianca Richter observa que o modelo se adapta bem ao ambiente arbitral, embora exija ajustes. Um dos principais pontos é conciliar a confidencialidade do processo com a transparência exigida pelos financiadores.

Eduardo Terashima, sócio do NHM, compartilha um caso de seu escritório em que o financiamento foi essencial para instaurar uma arbitragem de alto custo. O cliente auditou a origem dos recursos e eventuais conflitos de interesse, e cláusulas específicas foram incluídas para assegurar a autonomia do advogado. "É crucial que o contrato seja muito bem amarrado nesses pontos", afirma.

Arystóbulo de Oliveira Freitas reforça a necessidade de cuidados desde o início. Segundo ele, é essencial garantir que a decisão de buscar financiamento parta do cliente, e que a due diligence sobre o financiador inclua a análise de documentos, idoneidade e legalidade da operação. Freitas também recomenda firmar um acordo de confidencialidade logo nas primeiras conversas com os potenciais financiadores.

Diversas instituições arbitrais brasileiras já publicaram normas sobre o tema, como a Resolução nº 18 do Centro de Arbitragem e Mediação Brasil-Canadá (CAM-CCBC) e a Resolução nº 14/20 da Câmara de Mediação e Arbitragem Empresarial. Essas iniciativas buscam conferir mais segurança jurídica às partes envolvidas e servir de referência para práticas autorregulatórias no mercado.

Democratização do acesso à justiça: realidade ou promessa?

Entre os especialistas ouvidos, há divergências sobre o potencial do litigation finance para democratizar o acesso à justiça. Guilherme Setoguti defende que o modelo amplia o acesso ao Judiciário e à arbitragem para partes com bons direitos, mas sem recursos financeiros para litigar. Ele lembra que, em países com mercados maduros, até processos de menor valor são financiados.

Já Arystóbulo Freitas discorda da ideia de democratização. Para ele, o modelo ainda é restrito a grandes litígios empresariais, onde há cifras elevadas em jogo. Casos recentes envolvendo consumidores, como ações contra companhias aéreas, são exceções e não representam o padrão de mercado.

Eduardo Terashima aponta que, no Brasil, mecanismos como a justiça gratuita ainda têm papel importante. Ele ressalta que, diferentemente dos Estados Unidos, onde o alto custo do processo impulsiona o financiamento, no país o modelo ainda se concentra em disputas empresariais estratégicas. Mesmo assim, vê espaço para que, no futuro, o financiamento também seja aplicado a outras demandas.

Com desafios regulatórios, cuidados éticos e potencial estratégico, o litigation finance caminha para se consolidar como ferramenta relevante no contencioso empresarial brasileiro. A maturação do mercado dependerá da construção de práticas sólidas, da evolução da jurisprudência e da adoção de modelos que aliem segurança jurídica, transparência e acesso efetivo à justiça.

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