A inteligência artificial deixou de ser uma promessa distante para se tornar realidade cotidiana nos departamentos jurídicos e escritórios de advocacia brasileiros. O debate sobre como essa tecnologia está transformando a profissão ganhou destaque em um painel realizado durante a Fenalaw 2025, reunindo representantes de diferentes frentes: corporativa, escritórios e regulação. O consenso é claro: a mudança é irreversível e exige preparação.
O que diferencia este momento de outras revoluções tecnológicas é a velocidade da transformação e seu impacto direto sobre o conhecimento, não apenas sobre tarefas operacionais. Enquanto a Revolução Industrial automatizou o trabalho braçal, a IA atua no campo da cognição, alterando a essência do trabalho jurídico. A questão deixou de ser "se" a tecnologia será adotada para se tornar "como" utilizá-la de forma responsável e estratégica.
Santander lidera transformação digital no contencioso de massa
O Grupo Santander tornou-se referência involuntária em volume de processos judiciais no Brasil, especialmente na esfera trabalhista. Segundo Alessandro Tomao, vice-presidente executivo da instituição, o país representa o maior volume de litígios do grupo globalmente, superando o segundo colocado por 99% de distância. Essa realidade forçou o banco a investir pesadamente em soluções tecnológicas.
O executivo revelou que a estratégia inicial de implementação de IA focou nas operações mais repetitivas, como cadastro e documentação. No entanto, a experiência prática levou a mudanças significativas de rota. "Quando você pega a IA e testa para identificar ou ler um documento a partir de uma inicial que precisa identificar quais são as partes, recebe o documento e ele é possível de leitura pela IA, eu não preciso parar aí. Se eu já tenho toda essa informação, por que vou parar aí e passar para fazer a defesa?", questionou Tomao.
A evolução dos projetos levou o banco a buscar entregas mais completas. "Ao invés de apenas colocar inputs no sistema e subir a documentação, já agregamos outros tipos de informação para que o sistema entregue uma minuta de defesa", explicou o executivo, ressaltando que ainda há "muita participação humana" no processo.
O desafio atual do Santander é definir métricas claras de sucesso. O banco está testando diferentes modelos de parceria: prestadores que oferecem a tecnologia pronta versus desenvolvimento interno. "O que a gente tem visto agora muito nessa fase de teste é: no final, qual é o indicador que eu vou avaliar e qual o modelo de negócios que vai prosperar no futuro para esse tipo de prestador?", pontuou Tomao.
Equilíbrio entre automação e expertise humana
A visão dos escritórios de advocacia sobre a IA reflete preocupações distintas, especialmente em operações que não lidam com contencioso de massa. Renato Opice Blum, professor da ESPM e sócio fundador do Opice Blum Advogados, escritório especializado em direito digital e proteção de dados, destacou que a automação não é novidade na advocacia, mas ganhou nova dimensão.
Opice Blum traçou paralelo com práticas antigas, como os "burrinhos do Beneti", modelos de peças jurídicas criados pelo desembargador Sidney Beneti, que eram copiados em máquinas de escrever. A diferença fundamental está na capacidade de processamento. O escritório Opice Blum desenvolveu uma ferramenta própria, o Chat Opice, para testar aplicações específicas. "Nós fazemos esses testes, temos uma ferramenta chamada Chat Opice com motor de IA que a gente customiza, estressa muitas vezes ela e procura daí trazer alguns resultados", explicou o advogado.
Um ponto crítico levantado por Opice Blum é a qualidade dos comandos dados às ferramentas. "Para você ter um resultado muito bom, você tem que ter um prompt muito bom. Se você pedir 'faça uma inicial de acidente de trânsito', vai trazer o básico. Quando eu começo a detalhar tudo isso no prompt, o resultado começa a melhorar. Só que dependendo do tamanho do prompt ou da profundidade, eu praticamente já escrevi a peça", observou.
O advogado reconheceu que seus índices de erro com ferramentas de IA chegam a 35-40% em questões jurídicas mais especializadas. "Isso é uma realidade. Quando você vai para uma especialização jurídica mais profunda, a tendência é ter mais erros em função da estatística, que é menor", explicou, enfatizando a importância da supervisão humana.
OAB SP defende regulação transparente
A perspectiva regulatória trouxe preocupações adicionais ao debate. Leonardo Sica, presidente da OAB São Paulo e advogado criminalista há 30 anos, posicionou a entidade como agência regulatória responsável por olhar criticamente para o fenômeno. Sua primeira crítica foi à velocidade das tentativas iniciais de regulação.
"Logo quando surgiram as primeiras ferramentas de IA, tentamos regular algo que mal tinhamos a dimensão do que poderia ser. Dali a seis meses já não era o objeto sobre o qual o regulador observou. Então eu acho que os primeiros esboços de regulação foram muito bem intencionados, mas precoces", avaliou Sica.
Para o presidente da OAB SP, duas preocupações principais devem nortear a regulação: ética e transparência, especialmente na relação com o sistema de justiça. "Em relação ao judiciário, temos que exigir e trabalhar por uma regulação que seja absolutamente transparente quanto ao uso dos robôs", afirmou.
Sica cobrou clareza sobre como ferramentas como o Módulo de Apoio para Redação com Inteligência Artificial (MARIA), do Supremo Tribunal Federal, atuam nos processos.
O risco da litigância abusiva foi tema central na fala do presidente da OAB SP. Ele alertou que o Brasil já é campeão mundial em número de processos e a tecnologia pode piorar o cenário. "A possibilidade do mau uso da tecnologia aumentar o número de litígios é real. É real e acontece", afirmou Sica.
O advogado relatou casos concretos de abuso. "A gente tem recebido informações constantes de acessos, normalmente durante a madrugada, abusivos aos sistemas dos tribunais. Um CPF, ou seja, uma pessoa numa madrugada acessou 20 mil processos, por exemplo. A gente sabe o que está por trás disso, não é o advogado pesquisando jurisprudência", denunciou.
O dilema da formação dos novos advogados
A preocupação com o aprendizado profissional emergiu como tema transversal no debate. Sica foi enfático ao questionar como jovens advogados desenvolverão competências essenciais se desde o início já utilizarem ferramentas de IA sem dominar os fundamentos da profissão.
"Para supervisionar o robô, eu tenho que saber o que o robô está fazendo. Eu tenho que ter uma cultura profissional anterior ao uso da inteligência artificial", defendeu o presidente da OAB SP. Ele revelou decisão controversa em seu escritório criminal: "Tanto que no meu pequeno escritório, contratei duas ferramentas, e elas não estão disponíveis para uso dos estagiários e advogados no primeiro ou segundo ano. Só os advogados mais velhos gerenciam o uso junto com os advogados mais jovens e os estagiários."
A justificativa passa pela necessidade de formar profissionais que dominem habilidades fundamentais. "Não posso garantir que eles estão sabendo usar bem a ferramenta. Não sei se vão me entregar um trabalho que é 100% feito pelo robô, ou vão interpretar o que o robô está dizendo a respeito de um determinado processo", explicou Sica.
Modelos de negócio em transformação: quem fará a IA?
Um ponto de tensão importante no debate foi o questionamento sobre onde a tecnologia será desenvolvida e aplicada: dentro dos departamentos jurídicos das empresas ou nos escritórios contratados. Blum provocou diretamente o representante do Santander sobre essa definição estratégica.
A resposta de Tomao revelou que as corporações ainda testam diferentes caminhos. "Depende, Renato. Estou testando as duas coisas", respondeu o executivo, explicando que alguns prestadores propõem: "Não desenvolve você porque vai te dar trabalho, vai dar custo. Eu faço por você. Como eu vou usar menos advogados, te cobro na massa, na parte de processos de baixo preço e grande repetição, e te repasso o benefício."
O banco também desenvolve o que chama de "escritório interno". "Nós também temos o projeto 'escritório interno', que é: eu quero ter a tecnologia e ver se ela vai trazer mais aprendizado e mais ganhos, não só de quantidade de horas, pessoas envolvidas, mas outras provocações que vão engatilhar outros tipos de desenvolvimento", detalhou Tomao.
O executivo reconheceu que os modelos de precificação estão em fluxo. Alguns escritórios oferecem reduções significativas de custo ao utilizar IA, enquanto outros se posicionam como empresas de tecnologia que precisam de braço advocatício. "Mais uma vez, acho que vai depender muito do custo-benefício que a gente vai ter e dos indicadores de performance dos modelos", ponderou.
Perspectivas: espaço para todas as advocacias
Apesar dos desafios, o consenso entre os painelistas é que há espaço para diferentes modelos de atuação no futuro da advocacia. Tomao foi categórico nesse ponto, rebatendo a ideia de que apenas um tipo de advocacia prosperará.
A realidade econômica impõe limites práticos. "A gente tem alguns processos massivos que o título médio de perda é baixo. Se eu contratar um escritório mais caro, o molho sai mais caro que a carne, então não posso", explicou Tomao, reconhecendo simultaneamente: "Acho que dificilmente alguém vai tratar com IA isoladamente um caso de bilhões de reais."
Blum projetou até mesmo um cenário em que a hiperconectividade dos sistemas possa reduzir litígios. "Esse alto grau de sistematização interconectada pode fazer com que a gente não tenha litígio. Os sistemas estão tão conectados que o fato não vai acontecer, o sistema não deixa acontecer", especulou, ressalvando tratar-se de exercício de futurologia.
Mas o consenso é que a Inteligência Artificial não é uma promessa distante, mas uma realidade já consolidada — e irreversível — no mundo jurídico. Resistir à sua adoção significa perder competitividade em um mercado que se transforma em ritmo acelerado. O caminho, portanto, não é evitá-la, mas compreendê-la e integrá-la de forma estratégica, como uma aliada capaz de potencializar a atuação humana. A advocacia que prosperará será justamente aquela que souber equilibrar tecnologia e discernimento — usando a IA como ferramenta, e não como substituta.

