Vacina contra Covid-19 no setor privado: os desafios da obrigatoriedade para gerar um ambiente seguro | Análise
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Vacina contra Covid-19 no setor privado: os desafios da obrigatoriedade para gerar um ambiente seguro

Por Cássia Pizzotti, sócia da área trabalhista do Demarest Advogados

17 de March de 2021 8h

Desde a última quarta-feira (10), o setor privado está autorizado a adquirir vacinas aprovadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e, com isso, torna-se real o que antes era vislumbrado apenas como luz no fim do túnel para a retomada das atividades econômicas com segurança aos trabalhadores e às empresas.

Com a possibilidade de as empresas implementarem campanhas de vacinação para imunização de seus empregados contra o vírus da Covid-19, se intensificam as discussões sobre o tema na esfera das relações de trabalho. A vacinação pode ser imposta como obrigatória? Como lidar com os casos de trabalhadores que se recusarem a receber o antiviral? Pode a empresa demitir esse trabalhador por justa causa, conforme artigo 482 da CLT?

A questão é complexa e divide opiniões.

Para o Ministério Público do Trabalho (MPT), a recusa do trabalhador, quando não fundada em questões médicas justificadas, poderia ensejar, como última medida, o desligamento por justa causa. Os fundamentos para esse raciocínio seriam, sobretudo, a prevalência dos interesses coletivos e o pronunciamento do STF que, ao analisar a constitucionalidade do art. 3º, III, d, da Lei nº 13.979/2020, firmou entendimento no sentido de ser possível aos entes públicos impor medidas restritivas para aqueles que se recusem a se vacinar, não se caracterizando, em tais casos, violação à liberdade de consciência e de convicção filosófica.

Aqueles que compartilham do entendimento do MPT de que seria válido o desligamento por justa causa trazem argumentos como a obrigação legal dos empregadores de oferecer ambiente de trabalho seguro e o próprio dever legal dos empregados, previsto no artigo 158 da CLT, de observar as normas de segurança e de colaborar com a empresa para o cumprimento dessas normas. O mesmo dispositivo legal prevê tratar-se de conduta faltosa o descumprimento, pelo empregado, das instruções expedidas pelo empregador em matéria de segurança.

Os defensores da possibilidade de aplicação de sanções disciplinares aos ‘negacionistas’ preconizam a inclusão do risco de contaminação pelo novo coronavírus no Programa de Prevenção de Riscos Ambientais (PPRA), e a vacinação como parte do Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional (PCMSO), previstos respectivamente nas Normas Regulamentadoras nº 9 e 7, de implementação mandatória. Ou seja, ao estabelecer a vacinação como obrigatória, a recusa configuraria, então, em ato de insubordinação previsto na alínea "b" do artigo 482 da CLT como justa a causa para a rescisão.

Em sentido oposto, há o entendimento de que não se poderia punir o trabalhador já que tomar a vacina não consiste em dever legal e, portanto, da recusa não poderia advir sanção disciplinar. O fundamento aqui seria o art. 5º, inciso II, da Constituição Federal, que estabelece que "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei". O contraponto para esse entendimento vem da já mencionada possibilidade de que o empregador, obrigado a proporcionar um ambiente de trabalho seguro, imponha ao empregado a obrigação de se vacinar.

Como se vê, a questão de fundo reside na validade de norma imposta pelo empregador estabelecendo a obrigatoriedade da vacinação.

Em matéria trabalhista, a vacinação é tratada como mera possibilidade, não como obrigação, seja da empresa, seja do empregado. Aliás, a NR-32 estabelece que caberá ao empregador advertir o empregado sobre os riscos, inclusive em caso de recusa, a partir do que se infere que a recusa é admitida.

Para o STF, ninguém pode ser forçado a tomar a vacina.

Logo, estabelecer norma interna tornando a vacina obrigatória não teria respaldo na lei nem na jurisprudência.

As empresas ficam mais uma vez diante de cenário de insegurança jurídica. São obrigadas a conferir ambiente de trabalho seguro aos seus empregados, ficam expostas ao risco de responsabilização em casos de doença, mas não têm qualquer segurança para adotar as medidas consideradas hábeis à mitigação dos riscos de contaminação.

Chega a ser óbvio que um único empregado não imunizado possa comprometer inúmeros colegas que, por sua vez, exporão muitas outras pessoas à doença, entre os quais, os próprios familiares, em progressão geométrica. Ter a prerrogativa de adotar mecanismos voltados a impedir a disseminação do vírus não é simplesmente uma questão de poder disciplinar. Trata-se de direito da empresa de cumprir seu dever legal, e do trabalhador de exercer suas funções de maneira segura.

A imunização em massa, segundo a comunidade científica internacional, é o único meio de conter a pandemia. Para as empresas, isso significa a retomada da economia, a sustentabilidade do negócio e a manutenção de empregos. Para o trabalhador, a tutela de seu principal direito, o direito à vida.

Portanto, ter respaldo jurídico para adotar as medidas necessárias à preservação da saúde da coletividade, ainda que isso implique demissão por justa causa, deveria consistir em direito necessário assegurado a todo empregador.

Fato é que, por enquanto, e até que não se tenha a obrigatoriedade da vacina estabelecida legalmente, as empresas terão que fazer uso da balança risco x benefício. Àquelas que optarem por assumir os riscos, fica a recomendação para que atualizem seus PPRA e PCMSO, estabeleçam política interna e autorização escrita do empregado para que a vacina seja administrada.

Movimentos de conscientização e esclarecimentos aos empregados também serão importantes já que poderão demonstrar que a aplicação de medida disciplinar não decorreu de extrapolação do poder diretivo ou rigor excessivo. A celebração de norma coletiva (convenção ou acordo coletivo de trabalho) também poderá ser considerada como alternativa para instituir a obrigatoriedade de vacinação na tentativa de legitimar a medida, pois a sua implementação terá sido aprovada pelos trabalhadores devidamente assistidos pelo sindicato que os representa.

Os riscos continuarão existindo, qualquer que seja a direção que as empresas decidam seguir. Até que a questão seja regulamentada ou pacificada na jurisprudência, se é que será, resta a escolha sobre qual risco se quer correr.

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