Dentre as barreiras, ‘resistência à mudança’ é a que mais se destaca
No mundo ideal, os projetos jurídicos que envolvem tecnologia seriam idealizados, planejados, executados e monitorados por equipes dedicadas, sem sobrecarga de trabalho, com cronograma suave e sem escassez de recursos (financeiros e de pessoas). A cereja do bolo da sonhada utopia é um fechamento de projeto onde o ROI, o retorno de investimentos, é comprovado, deixando toda a liderança satisfeita de que foi feita a escolha certa. Infelizmente, não vivemos nesse mundo de eficiência.
Dados do In House Legal Tech Report¹ revelam que pelo menos 77% dos advogados entrevistados já falharam em projetos jurídicos de tecnologia. Contudo... Indagamos se t ais dados refletem o mercado brasileiro. Será que temos o mesmo resultado por aqui? Os problemas se repetem? Ou são dores inéditas no mercado corporativo?
No intuito de fomentar o ecossistema que une inovação, tecnologia e Direito, bem como refletir quais seriam essas dores e como remediá-las, buscamos fazer uma experimentação. Dois grupos distintos - povoados por representantes dos mais variados segmentos, dentre eles escritórios de advocacia, legaltechs, departamentos jurídicos, consultorias, entre outros - qual é a principal barreira em projetos jurídicos de tecnologia.
Na 1ª enquete, com 129 respondentes de uma rede social, a estruturação dos dados ficou da seguinte forma:
Já na 2ª enquete, realizada exatamente 1 mês depois, desta vez com 76 respondentes e em um grupo diferente de pessoas, mas também atendendo os mais variados segmentos de profissionais, o resultado foi assustadoramente próximo do 1º agrupamento. Veja:
Considerando os mais de 200 interessados nos reais motivos do fracasso dos projetos, é possível destacar que o grande vilão da falha ou da dificuldade de implementar projetos jurídicos de tecnologia é a resistência à mudança. A partir deste momento, reuniremos alguns insights que podem ser usados para superar cada uma dessas barreiras.
Resistência à mudança: cultura organizacional x execução da GMUD
O sucesso de um projeto perpassa necessariamente por pessoas engajadas a fazê-lo dar certo. É um vetor essencial ter um time motivado, com um clima organizacional favorável e compatível com a mudança requerida. Isso significa dizer que, se você estiver implementando um CLM (Contract Lifecycle Management)⁴, não adianta alimentar o saudosismo com o sistema antigo. Como práticas para suportar a criação de uma cultura organizacional pró-mudança e executar a Gestão de Mudança (GMUD) corretamente desde a fase de idealização do projeto, recomendamos:
● Identificar embaixadores: identifique quem são os colaboradores que podem agir como influenciadores, utilizando-os para engajar os demais. Caso tenham muitas pessoas no time, requerer que eles se voluntariem para o papel de "Agentes da mudança" é uma boa ideia;
● Deixe claro as razões: apesar de extremamente relevante, não paute sua justificativa para os stakeholders apenas no retorno de investimentos que justifica a implantação do projeto. Elabore uma lista de benefícios e lembre sempre a todos sobre o propósito maior - é mais fácil aceitar algo quando há clareza e compreensão compartilhadas entre os membros da equipe;
● Enumere os recursos: ainda que não se tenha um time dedicado, é importante estabelecer os papé is e responsabilidades daqueles que atuarão diretamente no projeto, experimente a matriz RASCI para definição de Responsável, Accountable, Suporte, Consultado e Informado. Determinar as horas de dedicação à iniciativa deixa evidente se será necessário mais gente e diminui como consequência a sobrecarga de trabalho;
● Benchmarking e cases de sucesso: demonstrar ao time a pesquisa de mercado realizada para a escolha da solução deixa evidente que não está sendo dado "um tiro no escuro". Buscar sessões, seja individualmente ou com comunidades, com quem já utiliza a solução é o melhor meio para buscar dicas práticas e entender se o que está sendo vendido pelo fornecedor é de fato aquilo que será entregue.
● Atualizações recorrentes: a motivação está diretamente ligada à informação. Comunique-se! Comunique-se com o time compartilhando atualizações constantes, revelando o status e a fase atual do projeto. Eles vão se interessar e se sentirão parte da mudança. A comunicação é a principal arma para que todos vistam a camisa da nova solução e isso vale para dentro do time quando para os demais clientes.
Liderança não investe ou falta orçamento
As duas pesquisas apontam que o segundo fator para o insucesso dos projetos é a falta de recursos financeiros. A mesma liderança que quer mudança, é a liderança que não investe. Recentemente, a Análise divulgou em pesquisa inédita que 42% dos escritórios afirmam adotar novas tecnologias para otimizar a gestão. A falta de investimento em tecnologia é um fator decisivo para o atraso dos Departamentos Jurídicos nas empresas. Há grandes corporações que ainda não deram uma chance para as soluções das startups, preferindo continuar a desperdiçar horas de trabalho de seus colaboradores internos e externos. E o mais grave: segundo a EY⁵, 75% dos diretores jurídicos alegam que nos próximos 3 anos os investimentos não aumentarão. Como poderíamos superar essa barreira:
● ROI: nenhum segundo pode ser considerado desperdício de tempo quando se monta um racional para retorno de investimentos. Por mais difícil que seja fazer o cálculo, pelo menos ter a estimativa é importante para justificar o investimento financeiro realizado. A Harvard Business School⁶
dedicou um artigo inteiro sobre o tema, no qual acreditamos e que reforça a importância que o assunto requer.
● Sumário executivo: elabore para a alta gestão um pequeno sumário, no formato "pre-reading", antes de realizar o encontro para convencê-los do projeto. Diga, em poucos tópicos, o problema, a solução identificada, o orçamento desejado e o ROI. Seja compreensível em seu discurso, leve um apoio de TI para dar suporte a eventuais perguntas técnicas e monte um storytellingpara defesa de seu projeto.
● Previsibilidade: todo colaborador em cargo de gestão sabe qual é o período para a elaboração do orçamento para o ano-calendário. Não importa se o seu orçamento é matricial ou base-zero: sempre existe um período anual em que ele é discutido. Não adianta defender o projeto depois que os recursos forem aprovados, portanto, tenha esse prazo em mente.
● Investimento em startups: se o problema é falta de orçamento, conhecer legaltechs e soluções em nível inicial de mercado pode ajudar. Além da economia, desenvolver parceria com uma empresa em fase de crescimento, possibilitando ter mais voz na criação de novas funcionalidades e nas trocas de experiência com os times multidisciplinares é uma verdadeira oportunidade. Já ouviu falar do radar das startups da AB2L?
Tecnologia é complexa ou não existe
Essa barreira é uma das mais frustrantes para aqueles que são entusiastas de tecnologia e gostam de novidade. A complexidade da tecnologia é uma questão de tempo. Há alguns meses, não se imaginava ter uma solução de prateleira de inteligência artificial e, com o boom do ChatGPT, já existem inúmeras empresas que estão aproveitando o recurso para entregar novas formas de trabalho, como soluções de notificação, peticionamento, contratos e consultas, respectivamente a Sem Processo⁷, DoNotPay⁸, Ironclad⁹, ROSS Intelligence¹⁰. Para contornar esse obstáculo, apresentamos os seguintes insights:
● Entenda o escopo: adicionar tecnologia num processo que não funciona, apenas vai digitalizar seus problemas. Antes mesmo de buscar por alguma solução, permita-se ter tempo para entender e mapear a operação atual, de modo a entender quem são seus clientes internos e externos. Com a dor muito bem mapeada, o entendimento de soluções tecnológicas alternativas será quase que natural - independentemente da complexidade.
● Saiba o momento de desenvolver internamente: essa solução se encaixa perfeitamente aqui. Desenvolver um novo sistema do zero exige um alto comprometimento e custo para sua criação. Desenvolver um software internamente tem como benefício a emancipação de empresas terceiras para a longevidade da utilização da solução - cabendo apenas a própria empresa decidir quais funcionalidades serão desenvolvidas, não dependendo de filas de desenvolvimento não priorizadas, além de custos exorbitantes de customização e renovação. Aqui o cuidado especial é no desenvolvimento de soluções que já existem e podem ser mais baratas (e por isso recorrer ao radar AB2L é igualmente importante).
● Tome cuidado ao personalizar demais: a alta personalização de softwares e tecnologias de prateleira encarecem sua atualização. Às vezes o custo/benefício da revisão de um processo interno é melhor do que pagar caro para adaptar um sistema que não receberá update no futuro. Geralmente as empresas cobram caro para atualizar soluções "Frankstein". Reflita sobre esse ponto.
Demora na implementação
Nas duas pesquisas apontadas acima, a lanterna coube à barreira da demora, da lentidão de execução do projeto entre o planejamento e a entrega. De todos os problemas apresentados, de fato exercitar a paciência é algo mais fácil do que fomentar uma nova cultura organizacional, convencer a liderança e conseguir orçamento e encontrar a tecnologia certa. Contudo, abaixo reunimos algumas dicas para superar essa dor por meio de uma gestão eficiente:
● Metodologias ágeis: atuar no mercado corporativo jurídico é conviver num ambiente de incertezas e por isso não podemos nos debruçar em projetos enormes e cheios de premissas. Se utilizar de princípios ágeis, como foco na satisfação do cliente, reação às mudanças, entregas constantes e simplicidade (não facilidade) pode ser um caminho para o sucesso de um projeto.
● Reuniões recorrentes: a agenda das pessoas precisa ser respeitada. A organização de um projeto é fundamental para que seja entregue no tempo certo e isso perpassa necessariamente por estipular encontros para discutir questões importantes como papeis e responsabilidades, entregáveis claros, ter pauta definida, entre outros.
● Entregas constantes: pensar em quick wins pode ser essencial para o alinhamento constante e construção de confiança em um longo projeto. "Pensar grande e executar pequeno" ajuda a manter a motivação da equipe e criar um movimento positivo para o projeto. Não esqueça de comemorar! Toda vitória conta.
● Cronograma ajustado: alguém precisa se atentar ao cronograma além do PMO, o escritório/ pessoa responsável pela gerência de projetos. Ainda que ele tenha a grande responsabilidade, é sempre bom ter alguém para refletir se os prazos acordados são suficientes ou se precisam ser pactuados.
Segundo a Gartner¹¹, cabe à principal liderança jurídica criar o clima para conduzir projetos de transformação bem-sucedidos. Seja na figura do sócio principal ou do diretor jurídico em empresas, é o clima organizacional que determina as entregas oriundas desta transformação. O clima é algo que afeta diretamente a cultura e, por sua vez, as pessoas. Pessoas provocam as mudanças que desejamos. Pessoas irão liderar uma boa Gestão de Mudanças para os projetos darem certo.
As pesquisas foram repetidas em grupos e condições diferenciadas para de fato entendermos se aquelas dores na gestão de projetos jurídicos em tecnologia faziam sentido. Para a nossa surpresa, ao agrupar os dados, as insatisfações possuem a mesma ordem e quase a mesma proporção. É mais um recado para que os advogados não subestimem a construção da GMUD com o apoio dos demais profissionais. Tenha a interdisciplinaridade como fortaleza e se contagie de diversidade de opinião, de cultura, de ideias e de histórias de vida!
Não poderíamos concluir de forma diferente: todas as barreiras - e seus consequentes insights para superá-las - são desafios presentes nos times de Legal Operations e nos profissionais que buscam inovação. Ainda, como a principal dor demonstrada pelas pesquisas é a resistência à mudança... Fazemos um convite para você que tem o poder de decisão: o que acha de valorizar essas posições? Investir na área de Legal Ops ou designar colaboradores com a função de buscar novas ferramentas pode ser um bom primeiro passo rumo à execução de projetos jurídicos alicerçados na tecnologia, evitando que qualquer um dos problemas apontados nas pesquisas acima se repitam e sim, sejam associados à inteligência, eficiência, eficácia jurídica e na construção de um bom legado para toda a Organização.
¹ In-House Legal Tech Report é um estudo produzido pela Contract Works/Onit. Disponível em https://www.contractworks.com/blog/new-ebook-2022-in-house-legal-tech-report. Acesso em 26/02/2023.
² Para maiores detalhes, consultar a enquete original publicada em https://www.linkedin.com/posts/paulo-samico_juraeddico-tecnologia-inovaaexaeto-activity-7018182920741826560-7vSG?utm_source=share&utm_medium=member_desktop, realizada em 09/01/2023.
³ Para maiores detalhes, consultar a enquete original publicada no grupo aberto da Comunidade Legal Operations Brasil (CLOB), realizada em 09/02/2023.
⁴ O CLM, sigla em inglês para Contract Lifecy cle Management (Gestão do Ciclo de Vida Contratual) é um sistema de gestão dos contratos que aposta na eficiência, na conformidade com as políticas internas e em procedimentos construídos de forma eficiente para provocar a sinergia e o entrosamento de todas as áreas envolvidas no fluxo de contratação.
⁵ Recomendamos a leitura na íntegra do estudo elaborado pela Ernst Young "The General Counsel Imperative: How do you turn barriers into building blocks?". Disponível em https://www.ey.com/en_gl/law/general-counsel-imperative-barriers-building-blocks, acessado em 26/02/2023.
⁶ "How to calculate a ROI to justify a project" é um artigo publicado pela Harvard Business School e pode ser encontrado em https://online.hbs.edu/blog/post/how-to-calculate-roi-for-a-project. Acesso em 26/02/2023.
⁷ Para maiores detalhes, acesse https://www.semprocesso.com.br/notificca-chat-gpt, consulta realizada em 02/03/2023.
⁸ Para maiores detalhes, acesse https://donotpay.com/, consulta realizada em 02/03/2023.
⁹ Para maiores detalhes, acesse https://gpt3demo.com/apps/ironcladapp, consulta realizada em 02/03/2023.
¹⁰ Para maiores detalhes, acesse https://www.rossintelligence.com/features, consulta realizada em 02/03/2023.
¹¹ Gartner revela que mais da metade dos Projetos de Transformação Jurídica estão abaixo da expectativa e que cabe à liderança jurídica criar um clima que conduza ao sucesso.Disponível em https://www.gartner.com/en/newsroom/press-releases/2021-01-26-gartner-says-more-than-half-of-legal-transformation-projects-underperform-expectations. Acesso em 26/02/2023.
Guilherme Tocci é ávido por inovação na prática do direito, teve uma carreira não tradicional no mundo jurídico. É Gerente Sênior Global de Legal Ops na Gympass e Cofundador da CLOB (Comunidade Legal Ops Brasil). Candidato ao MBA pela FGV e formado em Direito pelo Mackenzie. Trabalhou em legaltech e atuou em posição jurídica na Huawei e Demarest Advogados.
Paulo Samico é idealizador e coordenador da obra coletiva "Departamento Jurídico 4.0 e Legal Operations". Graduado em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da UFRJ, pós-graduado em Processo Civil e Direito Regulatório pela UERJ. Foi pesquisador acadêmico na FGV Conhecimento, coordenador jurídico e legal business partner na BAT Brasil (Souza Cruz) por 7 anos. Autor de diversos artigos publicados em periódicos jurídicos. Membro-fundador e coordenador do núcleo de Departamentos Jurídicos da AB2L. Atualmente é coordenador da coluna "Legal & Business" do JOTA, professor da Future Law e gerente jurídico na Mondelēz International, na posição de legal counsel & business partner para supply chain e inovação aberta.
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