A política tributária brasileira, ao longo das últimas décadas, foi marcada pela recorrente utilização de programas especiais de parcelamento, estruturados de forma padronizada e com pouca aderência à realidade financeira das empresas, resultando em baixo índice de recuperação para a União e contribuindo para o acúmulo de passivos fiscais, além da perpetuação da litigiosidade tanto na esfera administrativa quanto no Judiciário. A rigidez desses programas acabou por reforçar um ciclo de ineficiência, em que o contribuinte permanecia sem alternativas reais de regularização e o Estado via seus créditos cada vez mais comprometidos.
Nesse contexto, a transação tributária, especialmente na modalidade individual, despontou nos últimos anos como um verdadeiro ponto de inflexão no relacionamento entre fisco e contribuinte, pois, prevista na Lei nº 13.988/2020 e regulamentada por portarias como a PGFN nº 6.757/2022 e mais recentemente, a RFB nº 555/2025, a transação tributária individual deixou de ser vista apenas como uma alternativa ao parcelamento tradicional e vem se consolidando como uma via negocial capaz de adequar as condições de pagamento à realidade econômica de cada empresa, ao mesmo tempo em que estimula a desjudicialização e fortalece o planejamento empresarial.
O diferencial da transação individual está na possibilidade de adaptar o plano de pagamento à real capacidade econômica da empresa, pois, ao contrário dos parcelamentos convencionais que impõem condições uniformes, esse modelo permite negociar prazos mais longos, obter descontos em juros e multas, utilizar créditos fiscais e até oferecer garantias específicas, tudo dentro de uma análise caso a caso que busca privilegiar soluções viáveis e sustentáveis, capazes de assegurar tanto a continuidade das atividades empresariais quanto a efetiva recuperação do crédito público.
A redução recente do piso de valor para adesão no âmbito da Receita Federal (redução de R$ 10 milhões para R$ 5 milhões de reais) e a ampliação das hipóteses normativas trazidas pela nova Portaria RFB nº 555/2025 consolidam a transação como alternativa cada vez mais acessível, sobretudo porque editais atuais já permitem negociar débitos em contencioso que alcançam cifras expressivas, reforçando o papel estratégico da ferramenta.
Esse potencial é confirmado por casos concretos: a empresa Ecovix protagonizou uma das maiores transações fiscais do país, reduzindo um passivo superior a R$ 1 bilhão para cerca de R$ 214 milhões em acordo que viabilizou a emissão de certidões fiscais, a retomada das operações industriais, a preservação de empregos e a continuidade de contratos estratégicos, enquanto a Weclix Telecom S.A., em recuperação extrajudicial, obteve decisão judicial que lhe garantiu o direito de negociar dívidas classificadas pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) como irrecuperáveis, evidenciando que a própria jurisprudência do Judiciário tem se mostrado sensível em ampliar o alcance da transação tributária mesmo em situações atípicas. Entendemos que esses precedentes evidenciam que a transação tributária individual não apenas amplia o alcance negocial, mas também pode se tornar fator decisivo de recuperação e de competitividade para empresas em cenários de crise.
É verdade que a transação individual não está isenta de entraves. A complexidade documental, a exigência de diagnóstico detalhado dos débitos e a insegurança quanto ao uso de determinados créditos fiscais, como prejuízos acumulados e bases negativas de CSLL, ainda geram debates. Além disso, a possibilidade de rescisão por inadimplência pode representar risco para empresas em recuperação financeira. Outro ponto relevante é a necessidade de assegurar equilíbrio e isonomia entre os acordos celebrados, evitando distorções entre contribuintes em situações semelhantes.
Ainda assim, os avanços normativos e a evolução jurisprudencial mostram que os benefícios superam as limitações, abrindo espaço para a consolidação do instituto. A transação tributária individual tende a se expandir com novos editais, uniformização de conceitos como "dívida de difícil recuperação" e maior transparência nos parâmetros da PGFN e da Receita Federal, aproximando o Brasil de práticas internacionais de justiça fiscal mais modernas. Nesse cenário, advogados especializados ganham papel estratégico ao estruturar propostas viáveis, incluir cláusulas de revisão e transformar o instituto em ferramenta de regularização, governança e competitividade.
Mais do que um simples parcelamento, a transação individual se consolida como política pública inovadora, capaz de alinhar passivos à realidade das empresas, reduzir litigiosidade e fortalecer a sustentabilidade, contando com avanços normativos, como a recente Portaria RFB nº 555/2025, e com a intervenção do Judiciário, que já ampliou descontos e afastou restrições, reforçando a consolidação do instituto.
Vanessa Cardoso é advogada tributarista na Keramidas Advocacia; formada em Direito pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo); com pós-graduação em Direito Tributário pela FGV-Law (Fundação Getulio Vargas); pós-graduação em Direito Societário pela FGV-Law; e LLM in International Taxation pela Georgetown University (Washington, DC).
Joyce Gonçalves Nogueira é advogada tributarista na Keramidas Advocacia; integrante da Comissão Especial de Direito Tributário da OAB/SP (Ordem dos Advogados do Brasil, Seção São Paulo); associada ao Instituto Brasileiro de Arbitragem e Transação Tributária (IBATT); e Secretária-Geral da Câmara de Conciliação, Arbitragem e Mediação Intercultural (CCAMI).
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