No ecossistema das startups brasileiras, não são incomuns litígios societários entre sócios fundadores, sobretudo quando a história da empresa envolve a cocriação de ideias, marcas e modelos de negócio por mais de uma pessoa — seguidos de afastamento prático ou divergências na trajetória. Casos assim testam os limites da ética, do contrato social e da própria memória institucional do negócio.
Em processo de grande repercussão ainda em andamento, desenrola-se exatamente esse cenário: dois sócios, em colaboração, deram origem e consolidaram uma empresa inovadora. Um deles percebeu a oportunidade inédita no mercado brasileiro, concebeu o conceito, estruturou o modelo do negócio, criou o nome e a identidade da marca, desenvolveu o protótipo e códigos de programação iniciais, além de substanciais pesquisas para fundamentar a operação com base em referências internacionais relevantes. O outro atuou junto nessa fase inicial da execução, trabalhando lado a lado no desenvolvimento do projeto e na validação dos primeiros passos do negócio.
Tudo caminhava para o sucesso, até que, em determinado momento, ambos os sócios pausaram o projeto. Não houve, porém, qualquer renúncia expressa, liquidação de haveres ou acordo formal de saída. O executor apropriou-se do controle, formalizou unilateralmente o registro da sociedade empresária — sem o conhecimento ou participação do sócio originário —, e a partir dessa base construída em comum, passou a liderar a execução, assumiu responsabilidades operacionais e esteve à frente da atração de rodadas expressivas de investimento, conduzindo a empresa por etapas essenciais de crescimento até alcançar a escala nacional.
Nesse contexto, surgem os fundamentos centrais do litígio, sustentados na inicial com parecer do Professor Erasmo Valladão, referência nacional em direito societário. O núcleo: a formação de uma verdadeira sociedade em comum, típica do artigo 986 do Código Civil, caracterizada por affectio societatis comprovado em documentos, comunicação frequente, protótipos, códigos, divisão prospectiva de lucros e atuação partilhada.
A resposta judicial a esse tipo de controvérsia precisa, antes de tudo, reconhecer que a sociedade em comum existe mesmo sem contrato social registrado. O afastamento operacional não encerra os direitos do sócio se não for precedido de avença formal ou dissolução expressa. A jurisprudência do Estado de São Paulo e opiniões doutrinárias reforçam precedente histórico do STJ segundo o qual enquanto não há manifestação inequívoca do sócio preterido, subsiste a expectativa de partilha dos frutos do patrimônio comum.
Outro fundamento essencial do processo é o chamado lucro da intervenção. Essa figura, amplamente analisada pelo Prof. Erasmo Valladão e corroborada pelo STJ, define que, mesmo após eventual dissolução da sociedade de fato, se os ativos criados conjuntamente — como marca, know-how, plataforma e goodwill — permanecem sendo explorados de forma exclusiva por um dos sócios, o preterido tem direito à indenização proporcional ao benefício econômico extraído dessa exploração. A indenização não se resume à "foto" patrimonial do momento da dissolução, mas deve alcançar os lucros apropriados ao longo do tempo, desde que tenham origem direta no patrimônio comum.
No caso analisado, é inconteste que o capital intelectual, a marca, o modelo de negócios e a reputação utilizados para captar recursos e multiplicar o valuation da startup derivavam da atuação conjunta dos fundadores.
A formalização da sociedade sem ciência ou participação do sócio originário configura, assim, não só enriquecimento sem causa, mas também infração à boa-fé e ao princípio da cooperação, ferindo frontalmente a justiça contratual e a própria função social da empresa.
A disputa ultrapassa a simples divisão financeira. Trata-se, também, do direito à história, à autoria e à reputação no ecossistema de inovação — valores que, quando ignorados, solapam a confiança de todo o mercado, afastam investidores estratégicos e minam a cultura de respeito entre founders.
Ao fim, espera-se que o Judiciário, atento às mudanças do ambiente empresarial e à complexidade das startups, continue consolidando, como já vem fazendo, uma linha de proteção jurídica robusta ao instituto da sociedade em comum, ao direito de cofundação e à reparação ampla via lucro da intervenção. Justiça se constrói quando reconhece não só papéis oficiais, mas a verdade documentada nas origens do negócio.
Não importa o hype nem o valuation publicitário: justiça é dar a cada um o que construiu, sonhou, arriscou e provou. E, por aqui, sigo acreditando que a justiça vencerá.
Bruno Tabera é advogado, sócio do Escritório Champs Law. Especialista em contencioso estratégico, direito empresarial, propriedade intelectual e litígios societários envolvendo founders e empresas de tecnologia.
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