Quando o Direito Reescreve a História: Lições de um Grande Litígio de Cofundação | Análise
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Quando o Direito Reescreve a História: Lições de um Grande Litígio de Cofundação

Por Bruno Tabera, sócio do Escritório Champs Law

26 de August 11h40

No ecossistema das startups brasileiras, não são incomuns litígios societários entre sócios fundadores, sobretudo quando a história da empresa envolve a cocriação de ideias, marcas e modelos de negócio por mais de uma pessoa — seguidos de afastamento prático ou divergências na trajetória. Casos assim testam os limites da ética, do contrato social e da própria memória institucional do negócio.

Em processo de grande repercussão ainda em andamento, desenrola-se exatamente esse cenário: dois sócios, em colaboração, deram origem e consolidaram uma empresa inovadora. Um deles percebeu a oportunidade inédita no mercado brasileiro, concebeu o conceito, estruturou o modelo do negócio, criou o nome e a identidade da marca, desenvolveu o protótipo e códigos de programação iniciais, além de substanciais pesquisas para fundamentar a operação com base em referências internacionais relevantes. O outro atuou junto nessa fase inicial da execução, trabalhando lado a lado no desenvolvimento do projeto e na validação dos primeiros passos do negócio.

Tudo caminhava para o sucesso, até que, em determinado momento, ambos os sócios pausaram o projeto. Não houve, porém, qualquer renúncia expressa, liquidação de haveres ou acordo formal de saída. O executor apropriou-se do controle, formalizou unilateralmente o registro da sociedade empresária — sem o conhecimento ou participação do sócio originário —, e a partir dessa base construída em comum, passou a liderar a execução, assumiu responsabilidades operacionais e esteve à frente da atração de rodadas expressivas de investimento, conduzindo a empresa por etapas essenciais de crescimento até alcançar a escala nacional.

Nesse contexto, surgem os fundamentos centrais do litígio, sustentados na inicial com parecer do Professor Erasmo Valladão, referência nacional em direito societário. O núcleo: a formação de uma verdadeira sociedade em comum, típica do artigo 986 do Código Civil, caracterizada por affectio societatis comprovado em documentos, comunicação frequente, protótipos, códigos, divisão prospectiva de lucros e atuação partilhada.

A resposta judicial a esse tipo de controvérsia precisa, antes de tudo, reconhecer que a sociedade em comum existe mesmo sem contrato social registrado. O afastamento operacional não encerra os direitos do sócio se não for precedido de avença formal ou dissolução expressa. A jurisprudência do Estado de São Paulo e opiniões doutrinárias reforçam precedente histórico do STJ segundo o qual enquanto não há manifestação inequívoca do sócio preterido, subsiste a expectativa de partilha dos frutos do patrimônio comum.

Outro fundamento essencial do processo é o chamado lucro da intervenção. Essa figura, amplamente analisada pelo Prof. Erasmo Valladão e corroborada pelo STJ, define que, mesmo após eventual dissolução da sociedade de fato, se os ativos criados conjuntamente — como marca, know-how, plataforma e goodwill — permanecem sendo explorados de forma exclusiva por um dos sócios, o preterido tem direito à indenização proporcional ao benefício econômico extraído dessa exploração. A indenização não se resume à "foto" patrimonial do momento da dissolução, mas deve alcançar os lucros apropriados ao longo do tempo, desde que tenham origem direta no patrimônio comum.

No caso analisado, é inconteste que o capital intelectual, a marca, o modelo de negócios e a reputação utilizados para captar recursos e multiplicar o valuation da startup derivavam da atuação conjunta dos fundadores.

A formalização da sociedade sem ciência ou participação do sócio originário configura, assim, não só enriquecimento sem causa, mas também infração à boa-fé e ao princípio da cooperação, ferindo frontalmente a justiça contratual e a própria função social da empresa.

A disputa ultrapassa a simples divisão financeira. Trata-se, também, do direito à história, à autoria e à reputação no ecossistema de inovação — valores que, quando ignorados, solapam a confiança de todo o mercado, afastam investidores estratégicos e minam a cultura de respeito entre founders.

Ao fim, espera-se que o Judiciário, atento às mudanças do ambiente empresarial e à complexidade das startups, continue consolidando, como já vem fazendo, uma linha de proteção jurídica robusta ao instituto da sociedade em comum, ao direito de cofundação e à reparação ampla via lucro da intervenção. Justiça se constrói quando reconhece não só papéis oficiais, mas a verdade documentada nas origens do negócio.

Não importa o hype nem o valuation publicitário: justiça é dar a cada um o que construiu, sonhou, arriscou e provou. E, por aqui, sigo acreditando que a justiça vencerá.

Bruno Tabera é advogado, sócio  do Escritório Champs  Law. Especialista em contencioso estratégico, direito empresarial, propriedade intelectual e litígios societários envolvendo founders e empresas de tecnologia.

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