Quando a justiça gratuita vira negócio: o impacto da litigância predatória no sistema brasileiro | Análise
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Quando a justiça gratuita vira negócio: o impacto da litigância predatória no sistema brasileiro

Por Ana Letícia Bortolanza Crespani e Wenia Alves Dias, respectivamente advogada do Hoepers, Campos & Noroefé Advogados Associados e advogada sênior no Banco BMG

26 de November de 2024 11h40

A litigância temerária está se tornando um problema alarmante no sistema judiciário brasileiro. Esse fenômeno ocorre quando o direito de processar é explorado de maneira abusiva, não para resolver disputas legítimas, mas para obter vantagens indevidas. Assim, embora o Art. 5º, XXXV da Constituição Federal garanta o acesso ao Judiciário, esse direito não é absoluto.

No setor financeiro, por exemplo, o fenômeno assume uma forma particularmente grave. Instituições financeiras, frequentemente vistas como "galinhas dos ovos de ouro", tornam-se alvos certeiros para advogados que utilizam técnicas de advocacia de escala: criam perfis atraentes nas redes sociais para captar clientes, prometendo soluções rápidas para problemas legais, muitas vezes maximizados ou fabricados: alegações como "juros abusivos" em contratos de empréstimo consignado ou erros na negativação de crédito são usados para seduzir consumidores muitas vezes desinformados, incentivando-os a iniciar processos judiciais. Sem falar nos casos em que a parte autora sequer tem conhecimento da ação ou do "seu advogado".

Esse tipo de demanda se enquadra em um cenário de assédio processual, no qual alguns patronos se aproveitam da população hipervulnerável, composta, majoritariamente, por pessoas com baixa compreensão jurídica, idosos, analfabetos e indígenas. Utilizando a técnica "se colar, colou", esses causídicos buscam obter ganhos rápidos, ingressando com ações que se beneficiam da gratuidade judiciária - isentando o pagamento de custas e honorários sucumbenciais - e obtendo lucro financeiro de maneira antiética. Tal modelo não apenas explora as pessoas mais vulneráveis, mas, também, sobrecarrega o sistema judicial e prejudica seriamente as instituições financeiras, que enfrentam um volume excessivo de litígios infundados.

Um exemplo claro dessa prática é o processo 0701852-47.2024.8.02.0001, em tramitação na 3ª Vara Cível de Maceió. Neste caso, um causídico foi condenado ao pagamento das custas e despesas processuais, após ingressar com uma ação contra um banco, sem que

houvesse ciência da pessoa supostamente representada por ele: o autor do processo.

O juiz, na sentença, identificou que há várias ações semelhantes, em outras varas do Tribunal de Justiça do Alagoas, movidas pelo mesmo advogado. Ademais, observou que a parte autora entrou com processos separados para cada contrato, quando eles poderiam ter sido agrupados em uma única demanda.

Nesse sentido, Ada Pellegrini Grinover, professora da Universidade de Itaúna (MG) e vencedora do Prêmio Jabuti de Direito com a sua obra "Direitos Fundamentais das Pessoas em Situação de Rua", ressalta que a concessão da gratuidade deve ser rigorosamente monitorada para evitar sua transformação em uma ferramenta, como o caso citado acima. Segundo ela, o sistema precisa assegurar que esse benefício não comprometa a eficiência do Judiciário e prejudique as partes rés.

O cenário também desencadeia um problema maior, visto que, quando os advogados não obtêm sucesso em suas demandas, essas ações são frequentemente extintas, sem resolução de mérito, sem custos para os responsáveis. Assim, essa sobrecarga gera custos substanciais para o Estado e para as instituições privadas envolvidas, incluindo despesas com perícias e recursos dispendidos.

Para enfrentar esses desafios, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e outras entidades têm adotado medidas eficazes. A Portaria nº 02/2019-CGJ criou o Núcleo de Monitoramento do Perfil de Demandas (NUMOPEDE) no Tribunal de Justiça de São Paulo, que centraliza informações sobre práticas fraudulentas e identifica padrões de litigância temerária. Em apenas um ano, o NUMOPEDE revelou um prejuízo estimado em R$2,7 bilhões devido a aproximadamente 337 mil processos infundados.

Já no Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul, o Centro de Inteligência constatou a distribuição de 64.037 ações relacionadas a empréstimos consignados, das quais 34.071 foram patrocinadas pelo mesmo grupo de causídicos. Em 80% desses casos, as ações foram julgadas improcedentes e os autores condenados por litigância de má-fé, sublinhando a persistência desses abusos.

A resposta institucional aponta para a importância de uma revisão cuidadosa das condições para a concessão da benesse. Garantir que esse benefício chegue a quem realmente necessita, através da exigência de documentação completa e atualizada, pode ajudar a manter sua integridade. O aprimoramento das regras e a aplicação de sanções apropriadas contra abusos são passos importantes para assegurar que a justiça gratuita continue a atender seu propósito fundamental de forma justa e equitativa.

Ana Letícia Bortolanza Crespani é pós-graduada em direito processual cível e advogada do Hoepers, Campos & Noroefé Advogados Associados.

Wenia Alves Dias é pós-graduada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e especialista em Contencioso Cível. É advogada sênior no Banco BMG.

Ana Letícia Bortolanza Crespani e Wenia Alves Dias, respectivamente advogada do Hoepers, Campos & Noroefé Advogados Associados e advogada sênior no Banco BMG
Ana Letícia Bortolanza CrespaniBanco BMGHoepers, Campos & Noroéfé Advogados AssociadosWenia Alves Dias