O Judiciário brasileiro já ultrapassa 80 milhões de processos em tramitação. Ainda, estima-se que os tribunais brasileiros recebem 24,6 milhões de novos processos por ano, dos quais 5,1 milhões envolvem conflitos entre consumidores e empresas. Isso significa que praticamente 20% dos novos processos ano a ano versam sobre demandas consumeristas, o que demonstra um cenário de litigância extrema que impacta as empresas.
Em paralelo, o número de inadimplentes atinge patamares históricos: 75,7 milhões de consumidores inadimplentes, mais de 7,3 milhões de empresas negativadas, R$ 438 bilhões em dívidas de pessoas físicas e R$ 169,8 bilhões em dívidas de pessoas jurídicas.
Para empresas do setor de consumo, esses dois fatores se encontram na linha de frente de um desafio: como preservar reputação, liquidez e governança diante de um cenário que estimula a judicialização massiva.
A resposta, ou parte dela, está na prevenção de litígios. Porém, é preciso ir além do discurso e enxergá-lo efetivamente como uma ferramenta concreta de contenção de passivo, eficiência financeira e, sobretudo, governança corporativa.
A prevenção deixou de ser apenas uma estratégia jurídica. Ela passou a ser parte do sistema de governança das empresas. Afinal, litígios, especialmente em larga escala, comprometem o valor da empresa, sua reputação no mercado, e podem impactar objetivamente nos resultados financeiros.
Nesse contexto, ganha força o trabalho dos núcleos de prevenção, responsáveis por monitorar, de forma assertiva, canais como Procon, Consumidor.gov.br, Reclame Aqui e agências reguladoras. Ao dar respostas estratégicas e com a abordagem adequada para cada canal, a empresa transforma o passivo em ação direcionada, antecipando riscos e fortalecendo a relação com o consumidor.
Um bom exemplo disso é a plataforma Consumidor.gov.br, que apresenta um índice médio de resolução de 80% das reclamações registradas. Esse dado reforça o potencial dos canais extrajudiciais quando bem utilizados. Se monitorado com atenção e conduzido com estratégia, esse tipo de canal pode representar uma redução de até 80% do contencioso judicial potencial, transformando o que antes viraria processo em oportunidade de fidelização, resposta técnica e solução célere.
Para efeito comparativo, segundo o relatório Justiça em Números 2024 (ano-base 2023), o tempo médio de tramitação de um processo na Justiça Estadual é de 4 anos e 5 meses, enquanto nas demandas que tramitam nos Juizados Especiais Cíveis o prazo médio é de 1 ano e 2 meses. Já na plataforma Consumidor.gov.br, a empresa tem o prazo máximo de 10 dias corridos para responder à reclamação registrada, o que evidencia o ganho em celeridade, eficiência e custo-benefício.
A atuação preventiva, portanto, não apenas evita litígios, mas oferece insumos valiosos à operação. Ao organizar seus dados sobre litígios e inadimplência, a empresa passa a operar com indicadores de risco e score de judicialização, permitindo ajustes na operação de forma antecipada e não apenas reativa.
Esse movimento de valorização dos canais extrajudiciais foi reforçado por decisões judiciais relevantes. Um exemplo disso vem do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, que passou a exigir que, nas relações consumeristas de natureza prestacional, a tentativa prévia de solução administrativa seja condição indispensável para o ingresso da ação judicial.
Embora ainda não se trate de uma jurisprudência vinculante nacional, trata-se de uma decisão importante, com alto potencial de repercussão em outros Tribunais. O Judiciário, ao reconhecer a relevância da esfera administrativa, incentiva o uso dos meios preventivos de resolução e fortalece a atuação jurídica anterior ao litígio.
Para as empresas, essa mudança provocou um aumento expressivo nos canais extrajudiciais, o que permitiu a solução da demanda na seara administrativa, reduzindo exponencialmente os custos com litígios, bem como preservando a reputação da marca.
Mais do que resolver reclamações, essas notificações passaram a ser analisadas com lupa, pois servem como termômetro da operação, mapa de conflitos potenciais e instrumento de fidelização do consumidor. Em vez de enxergá-las como custo ou risco, a nova mentalidade é tratá-las como oportunidade de preservar relações e evitar litígios, protegendo reputação e caixa.
Outro fator importante, que vem ganhando cada vez mais força dentro das empresas, é a governança de conflitos, na qual o jurídico deixa de ser acionado apenas na crise, sendo incluído desde o início da operação, ajudando a estruturá-la e posicioná-la no mercado já com uma análise jurídica de riscos.
Trata-se de implantar uma reorganização sistêmica em que o departamento jurídico atua desde a criação do negócio até a eventual resolução do litígio, a participação dos departamentos em sinergia desde a criação do negócio.
A prevenção de litígios não é uma moda passageira. Ela é parte do sistema de sustentabilidade corporativa. Governança, compliance, atendimento ao consumidor e estrutura jurídica precisam estar conectados por uma lógica comum: ouvir antes, responder rápido e resolver com inteligência.
Empresas que tratam litígios como termômetro da operação, e não como resíduo inevitável, saem na frente. O futuro pertence a quem previne e, principalmente, a quem previne com estratégia.
Renata Belmonte é sócia do Albuquerque Melo Advogados na área de Contencioso Cível, pós-graduada em Processo Civil pela Escola Paulista de Direito (EPD) e membro da Comissão Permanente de Defesa do Consumidor, da Comissão Especial de Direito Bancário e da Comissão Especial de Direito Aeronáutico da OAB-SP e da Comissão de Direito do Consumidor da OAB/RJ;
Julia Vieira de Castro Lins é Chief Legal Officer do Albuquerque Melo Advogados, pós-graduada em Direito Empresarial pela FGV e integrante das comissões Direito Civil, de Direito Aeronáutico, Espacial e Aeroportuário e de Direito Empresarial da OAB/RJ;
Danielle Braga é sócia do Albuquerque Melo Advogados e CLO do Contencioso Cível de Escala e Estratégico. Advogada formada pela FND-UFRJ, com MBA em Gestão de Negócios pelo IBMEC, escreve sobre Direito, liderança, inovação e análise de negócios.
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