O Direito¹, separado da moral e da política, permite a análise crítica do posicionamento da Receita Federal acerca de temas eminentemente trabalhistas, em especial no que concerne ao pagamento de prêmios, ressarcimento de despesas em teletrabalho e indenização pela ausência de intervalo intrajornada, tendo em conta as disposições da Lei 13.467/17 (reforma trabalhista) sobre o assunto.
Com a reforma trabalhista, foi alterado o parágrafo 4º do art. 71 da CLT, para estabelecer que a não concessão, ou a concessão parcial do intervalo para alimentação e descanso, implica o pagamento, de natureza indenizatória, apenas do período suprimido, com acréscimo de 50%. Apesar desta disposição expressa de lei federal específica sobre o assunto, a Receita Federal, em 29/8/2023, publicou a Solução de Consulta COSIT nº 99.099/2023, com o entendimento de que a verba paga em razão da supressão total ou parcial do intervalo para alimentação e descanso deve integrar a base de cálculo para fins de incidência das contribuições sociais previdenciárias sobre a folha de salários e o salário contribuição. No entendimento da Receita Federal, a cobrança do tributo se justifica porque: "(i) a contraprestação pelo trabalho executado é fato gerador dos tributos em exame; (ii) a atribuição formal, em lei trabalhista, de natureza indenizatória a verba é insuficiente para descaracterizar o fato gerador do tributo, e, como lei especial, prevalece o determinado na lei tributária no concernente à aplicação de tributos; e (iii) seria necessária cláusula excluindo expressamente a verba da hipótese de incidência (inclusive, a mesma lei o fez para outras verbas que excluiu da base de cálculo dos mesmos tributos)".
Noutro exemplo, tem-se o artigo 75-D, parágrafo único da CLT que, com a reforma trabalhista, determina que os valores pagos por empregadores com a finalidade de ressarcir gastos com internete energia elétrica, em teletrabalho, não devem ser incluídos na base de cálculo das contribuições previdenciárias, sem quaisquer restrições. Em 11/5/2023, a Receita Federal publicou a Solução de Consulta nº 87, determinando que, para a caracterização do aspecto indenizatório de tais verbas, é necessário apresentar os comprovantes de pagamento das despesas, por meio de documentação hábil e idônea, criando obrigação para o contribuinte.
Os parágrafos 2º e 4º do art. 457 da CLT, com a redação dada pela reforma trabalhista, determinam que as importâncias, ainda que habituais, pagas a título de prêmios ("liberalidades concedidas pelo empregador em forma de bens, serviços ou valor em dinheiro a empregado ou a grupo de empregados, em razão de desempenho superior ao ordinariamente esperado no exercício de suas atividades") e abonos não integram a remuneração do empregado, não se incorporam ao contrato de trabalho e não constituem base de incidência para qualquer encargo trabalhista ou previdenciário, também sem quaisquer restrições. Nada obstante, em 21/5/2019, a Receita Federal publicou a Solução de Consulta nº 151, estabelecendo que os prêmios excluídos da incidência das contribuições previdenciárias são apenas aqueles: "(i) pagos, exclusivamente a segurados empregados, não alcançando contribuintes individuais; (ii) pagos em dinheiro, bens ou serviços; (iii) que não decorram de obrigação legal ou ajuste expresso, hipótese em que restaria descaracterizada a liberalidade do empregador; e (iv) que representem desempenho superior ao ordinariamente esperado, devendo ser comprovado objetivamente pelo empregador qual era o desempenho esperado e quanto dele foi superado". Aqui também se tem regulamentação ampliativa realizada pelo agente público, tendo em conta disposição específica de lei votada pelo Congresso Nacional.
Esses são apenas três exemplos em que se percebe divergência, ou ampliação do disposto pela legislação federal específica - reforma trabalhista, amplamente discutida no Congresso Nacional, realizada por agente público, o que é questionável tanto do ponto de vista da Ciência do Direito, quanto do ponto de vista da teoria da hierarquia das normas, na medida em que uma solução de consulta não deve se prestar a restringir ou ampliar o estabelecido por norma federal específica ou, ainda, contrariar tal norma.
Por muitas vezes criticada, a teoria positivista de Kelsen merece ser relembrada. Nesse cipoal de normas e soluções interpretativas contraditórias, com o claro intuito político arrecadatório, é salutar que se volte a debater conceitos básicos, desvinculando as interpretações da norma legal do referido objetivo arrecadatório. Do ponto de vista prático, a iniciativa privada se vê cada vez mais tolhida por decisões administrativas como as acima citadas, que não só podem, como devem, ser questionadas judicialmente por contribuintes, a fim de que se faça cumprir a vontade popular, espelhada na normatização regularmente votada por seus representantes no Congresso Nacional.
Por meio de medidas judiciais, o empregador, na condição de contribuinte de direito, pode reduzir o ônus tributário sobre a sua folha de salários, de forma a ampliar sua margem ou gerar condições mais competitivas de mercado.
Portanto, o empresariado deve estar atento a essas possibilidades, na medida em que podem reduzir valores arrecados a título de tributos, com melhora do resultado financeiro anual e possibilidade de efetivo desenvolvimento da atividade econômica, com novos investimentos e geração de empregos.
¹KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado, 4ª edição, 1994.
Ariela Ribera Duarte é sócia da área trabalhista do Manucci Advogados. Pós Graduada em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Fundação Getulio Vargas, Pós Graduada em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Newton Paiva
Graduada em Direito pela Universidade Católica de Minas Gerais/PUCMINAS.
Fabrício Campos é sócio da área de Direito Tributário do Manucci Advogados. Doutorando em Direito Tributário pela University of Leeds (Reino Unido), Mestre em Finanças e Contabilidade pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Graduado em Ciências Contábeis pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas).
Patrícia Vilhena é sócia da área trabalhista do Manucci Advogados. Possui LL.M pela Universidade de Houston - Texas, Pós Graduada pela Southern Methodist University em Dallas, Texas e Graduada em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.
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