Nestes momentos de circulação mais restrita, o acesso às utilidades digitais para abastecer a despensa, reunir equipe ou passar por uma consulta médica proporciona, ao lado da praticidade, segurança do registro e do rastreamento das operações, possibilidade de validação das percepções de custo, qualidade e reputação de quem está do outro "lado" e da plataforma por onde o negócio acontece.
Em tempos de tão rápidas mudanças, a regra escrita pode ficar cada vez mais distante da vida como ela acontece, o que se dá muito nitidamente nas questões do mundo digital.
A chamada nova realidade tem desafiado os profissionais da área jurídica a compreender quais normas servirão para resolver determinadas situações, instalando-se razoável previsibilidade para os demais eventos semelhantes em decorrência do bom fundamento da solução encontrada.
A parte boa na aplicação do Direito é que alguns diplomas jurídicos, a exemplo do Código de Defesa do Consumidor e da Lei de Proteção de Dados trazem, ostensiva e objetivamente, princípios que contribuem para afastar obstáculos de aplicação por ausência de link entre os fatos atuais - oriundos da evolução social ou das novas tecnologias - e os fatos que ocorriam na época em que as normas surgiram.
No ambiente digital, a comunicação tende a ser mais fácil
O volume de informações tratadas, tanto na seara do cadastro básico dos consumidores quanto a respeito dos seus hábitos de consumo e, somando-se "crés" com "lés", sobre potenciais tendências de novos hábitos, gera instantânea responsabilidade de conduta ainda maior do que o dever de disponibilizar o número de telefone dos órgãos de defesa do consumidor ou lembrar consumidores sobre exigir as evidências da transação. Isto é, as notas dos produtos.
Assim é que para proporcionar segurança às partes da mais simples operação de compra e venda digital, a transversalidade na compreensão e aplicação do Direito atinge patamar sem precedentes, desafiando desde a forma como, ainda na academia, aprendemos ciências jurídicas naquele formato de caixinhas ideais que pouco se movimentam para relacionar-se umas às outras.
Olhando, agora, para o complexo sistema jurídico brasileiro, a complementaridade entre o âmbito consumerista e a proteção dos dados pessoais é um dos grandes desafios do momento.
A privacidade, núcleo da proteção dos dados pessoais, é elemento relevante para observação das relações jurídicas entre quem oferta, desde uma feature de comunicação, até um bem ou serviço através de meios eletrônicos, porque, na base da relação entre a plataforma digital, todos os seus usuários e os atos de consumo em si, há elementos que contribuem para que o meio, a ferramenta, seja percebido, por alguma razão, essencial ao modelo de negócio e até preferido entre múltiplas possibilidades.
Empresas estão desafiadas a manter esforços para reduzir o atrito nas relações consumeristas ao tempo em que atuam para que a proteção dos dados pessoais não seja outra enorme frente de arrasto, na contramão da fluidez, previsibilidade e escalabilidade, muito significativos nas operações de consumo, e também do tratamento de dados.
Junte-se as possibilidades de fricção à desinformação estrutural numa sociedade como a brasileira e os riscos estarão prontos para sua forma mais escalável, com igual ou maior poder de dizimar qualquer iniciativa empreendedora do que esses tempos de pandemia ainda o fazem.
E no esforço de proteger tanto os atores da relação de consumo como, em boa porção, esses mesmos entes enquanto pessoas físicas, conjugar os princípios que estão na raiz ou no próprio texto de norma consumerista e da norma de proteção de dados é imprescindível.
Prevenção
Aplicar o princípio da prevenção sob os aspectos das relações de consumo e olhando também para proteção dos dados pessoais, importa a todos, porque através dele se concretiza a consciência do dever de coibir-se situações cujo resultado seja pernicioso às pessoas. Entre 2011 e 2013, quando escrevi a primeira vez sobre isso, pontuei que este princípio, o da prevenção, determina o dever de adotar todas as medidas para evitar a concretização de eventos previsíveis e cujo resultado provável seja danoso aos consumidores e a terceiros.
É claro, naquela época, isso gerou críticas de consumeristas clássicos, primeiro porque não contemplavam a aplicação da prevenção diretamente nas relações de consumo, segundo e não menos importante porque ao discorrer sobre o tema, eu utilizava conceitos do anteprojeto da Lei de Proteção de Dados Pessoais, tendo em vista que o núcleo da pesquisa era justamente os cadastros de consumidores. O princípio era abertamente aceito na Direito Ambiental - também difuso e coletivo - mas não no Direito do Consumidor.
Mas, na prática, o que significa isso, numa leitura transversal entre relação de consumo e proteção de dados pessoais?
Significa que, no tratamento de dados, a conjugação de dados pessoais com os que referem hábitos de consumo não deve ser utilizada para expor as pessoas à subtração da consciência e indução de vontade, tendo em vista os perigos decorrentes da aplicação desse tipo de engenharia impõe à toda sociedade.
O princípio da transparência como parceiro na condução dos negócios
Ao empregar práticas baseadas nesse princípio, o empreendedor não apenas se pautará por algo que está na raiz do Direito do consumidor como também é, desde a aurora, pilar da proteção dos dados pessoais, portanto, muito significativo para reduzir impactos de situações que a empresa não tenha conseguido evitar mas, sobretudo, alicerce da preservação do que há de mais caro à sustentação do negócio: a reputação.
Negócios digitais são suscetíveis a comprometimentos de dados em larga escala, senão porque sua capacidade de tratamento é muito maior do que os grandes arquivos de outrora, mas porque o ambiente eletrônico permite que sejam desferidos ataques de quaisquer localidades do globo terrestre, sem a necessidade de pesadas estruturas de pessoas e recursos físicos e com boas chances de preservação do anonimato daqueles que atacam.
Muito por isso, na sociedade digital, há quem afirme certo o comprometimento de qualquer negócio, em algum momento, não se podendo prever apenas o quando, como e qual fatia das informações será capturada num átimo de segundo.
Compreender perspectivas
Diante de um evento concreto, no atendimento aos afetados, procurar compreender as dores e perspectivas dessas pessoas, seja na condição de consumidores ou mesmo de titulares de dados pessoais.
Iniciativas calibradas daquele modo, de um lado, permitirão a evolução de produtos e funcionalidades das aplicações, ao tempo em que ajudarão evitar a judicialização de casos que mesmo diante da ótima perspectiva de vitória das empresas, se lhes custam mais energia do que benefícios na preservação de direitos, porque, afinal, como pontua o professor Doutor Luiz Fernando Afonso, o Judiciário está literalmente abarrotado de ações judiciais, das mais variadas naturezas.
Ao lado das reflexões aqui postas, a ideia é a de que o Direito pode e deve, como bem pontua Fabíola Meira de Almeida Breseghello, ser interpretado de forma unitária, mas não isolada, e nesta direção, também ao meu sentir, as leis (no caso do CDC e a LGPD) não se excluirão, ao contrário, se complementarão e tendem a ser mais eficientes na consciência e no relacionamento aqueles que, percebendo essa convergência, investirem em evitar as exposição de outras pessoas a perigos, comunicarem e se relacionarem de forma transparente e dedicarem sua energia, tanto quanto o fazem no desenvolvimento de produtos, para compreender, a cada ponto de contato, a dor e o ponto de vista dos consumidores enquanto titulares de dados pessoais ou dos titulares de dados pessoais enquanto consumidores, senão de um bem ou serviço, de features de uma aplicação tecnológica.