Planejamento sucessório e PLP nº 108/2024: possíveis mudanças no ITCMD | Análise
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Planejamento sucessório e PLP nº 108/2024: possíveis mudanças no ITCMD

Por Lucas Martini de Aguiar, sócio do HRSA Sociedade de Advogados

13 de August de 2024 9h29

No contexto de regulamentação da reforma tributária vinculada à Emenda Constitucional n.º 132/2023, em paralelo ao Projeto de Lei Complementar n.º 68/2024 (PLP 68/2024), também tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei Complementar n.º 108/2024 (PLP 108/2024), que dispõe essencialmente sobre tópicos relacionados ao Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), mas que também endereça possíveis mudanças impactantes em relação ao Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação de Quaisquer Bens ou Direitos (ITCMD).

Dentre tantos temas relevantes tratados no PLP 108/2024, especificamente no que tange ao ITCMD, um dos pontos que desperta grande atenção e preocupação - na redação do texto substitutivo apresentado pelo Grupo de Trabalho (GT) em 08 de julho - são os dispositivos relacionados à identificação de situações que poderão presumir a ocorrência de fato gerador do ITCMD.

Nesse sentido, nos termos da atual redação do PLP 108/2024, consideram-se como doações, para fins de incidência do ITCMD, por exemplo: "os atos societários que resultem em benefícios desproporcionais para sócio ou acionista praticados por liberalidade e sem justificativa negocial passível de comprovação, incluindo distribuição desproporcional de dividendos, cisão desproporcional e aumento ou redução de capital a preços diferenciados" - cf. inciso I, §5º, do art. 164.

A expressão acima também poderia ser facilmente depreendida dos incontáveis julgamentos de planejamentos tributários no âmbito do CARF - já há muito criticados pelo alto grau de subjetividade, influência de supostos requisitos desprovidos de fundamentação legal, resultando em ampla insegurança jurídica aos contribuintes. Não parece adequado estender essa insegurança jurídica ao ITCMD e instaurar uma nova frente para litígio.

O que seria, por exemplo, uma distribuição desproporcional de dividendos "sem justificativa negocial"? Não é difícil prever que um dos possíveis focos de autuação seriam ‘holdings patrimoniais’, na qual o patriarca/matriarca, embora detentores de participação majoritária, admitam que a distribuição desproporcional favoreça seus filhos (minoritários).

Qual a ilegalidade nessa situação exemplificada? Não há dúvida de que os sócios são livres para estabelecer a possibilidade de distribuição de lucros diferente da proporção de suas respectivas quotas (art. 1.007 do Código Civil). Nos casos de ‘holdings patrimoniais’ dedicadas à exploração de venda/locação de imóveis, deveriam os minoritários comprovar que exercem a administração/gestão para a "justificação negocial" da distribuição desproporcional? Qual seria o critério adequado em casos de empresas com ‘renda passiva’? O contencioso é absolutamente previsível se mantida essa redação do PLP nº 108/2024.

Note-se que ainda que existisse ilegalidade, não há como considerar "como doação, para fins da incidência do ITCMD" o que simplesmente não se enquadra como tal ‘negócio jurídico’. No artigo 116 do CTN, o legislador contemplou ‘situações de fato’ e ‘situações jurídicas’ como hipóteses tributárias, sendo estas últimas aquelas em que é exigido um negócio jurídico valido para cogitar o consequente normativo (obrigação tributária). São os casos em que o Direito Tributário se reporta a situações já reguladas por outros ramos do Direito, como é o caso das doações. Logo, para que se concretize um fato jurídico tributário apto a desencadear a incidência do ITCMD, é imprescindível que uma doação seja aperfeiçoada.

No caso da Federação brasileira, a opção adotada pelo constituinte originário relativamente à delimitação do poder de tributar foi justamente a de discriminar de forma rígida as competências tributárias atribuídas a cada ente federado. A competência tributária relativa ao ITCMD é claramente delimitada à situação jurídica das doações e heranças, e não cumpre ser indevidamente estendida por analogia para efeito de alcance da tributação pelo imposto estadual.

Dentre o gênero ‘transferências patrimoniais’, o constituinte apenas inseriu na competência dos estados a tributação das doações e heranças. Aqui, ainda que se entenda por uma corrente tipológica de atribuição de competência tributária, não é possível aplicá-la com o intuito de expandir a hipótese tributária do ITCMD. Ou seja, os Estados não têm competência para tributar outras espécies de transferência patrimonial pelo ITCMD.

É possível, inclusive, identificar situações concretas em que exatamente esse ponto abordado no PLP nº 108/2024 já chegou a ser enfrentado pelas autoridades fiscais estaduais, na tentativa de exigir o ITCMD. Como exemplo, podem ser mencionados casos de ‘perdão de dívida’, em relação aos quais a SEFAZ/SP, por exemplo já se posicionou no seguinte sentido: "Nas operações de renegociação de dívida em âmbito comercial, se restar claro que são pertinentes, legítimas, justificáveis e que a renegociação da dívida seja uma estratégia empresarial para incentivar o adimplemento da obrigação e não a transferência voluntária de patrimônio do credor para o devedor, não se vislumbra, a princípio, a existência de doação." (Resposta à Consulta Tributária n.º 20978/2019).

Não é coincidência o fato de o ‘perdão de dívida’ também constar na redação do texto substitutivo do PLP 108/2024 (cf. inciso II, §5º, do art. 164) - o que é igualmente preocupante, visto que ressalvada a hipótese em que jamais houve, de fato, o negócio jurídico que gerou a dívida (sendo desde o princípio uma doação), é absolutamente inadmissível ‘considerar o perdão de dívida como uma doação’, para efeito de tributá-lo pelo ITCMD.

Por fim, também é alarmante a previsão de que será considerada como doação "a transmissão declarada como onerosa para pessoa que não comprove capacidade financeira para sua aquisição" (inciso III, §5º, do art. 164). Trata-se de previsão que, além de ser criticável pelos aspectos já mencionados anteriormente, está fundamentada em conceito altamente subjetivo, que poderá criar presunções indevidas sobre operações legítimas de alienação

Diante de todos esses elementos, é extremamente importante que o tema do ITCMD seja atentamente reconsiderado e cuidadosamente tratado durante o processo legislativo do PLP 108/2024, sob pena de evidentes inconstitucionalidades, bem como impactos relevantes em relação a outros temas que não foram especificamente enfrentados neste artigo (como, por exemplo, os planos de VGBL e PGBL).

Lucas Martini de Aguiar é sócio do HRSA Sociedade de Advogados. Lucas é graduado em direito pela PUC-SP, possui um mestrado em direito tributário pela USP além de uma especialização, também em direito tributário, pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário.

Lucas Martini de Aguiar

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