Participação social, deferência legislativa e populismo regulatório | Análise
Análise

Participação social, deferência legislativa e populismo regulatório

Por Fernando Villela de Andrade Vianna, sócio do Vella Pugliese Buosi e Guidoni (VPBG)

19 de November de 2019 17h09

A teoria regulatória reconhece que parte substancial da legitimidade do poder normativo exercido pelas agências reguladoras depende diretamente da participação dos agentes regulados e da sociedade como um todo durante o processo de formação de uma determinada norma. Não é à toa que, desde a década de 90, quando se iniciou no Brasil um esforço político-institucional de redução do papel do Estado na economia com as privatizações e concessões, as agências reguladoras vêm se desenvolvendo e aprimorando seus instrumentos jurídico-regulatórios.

Passados mais de 30 anos da promulgação da Constituição brasileira, o mercado precisa de segurança jurídica e estabilidade regulatória para atrair capital nacional e estrangeiro para o Brasil. O festejado magistrado britânico Tom Bingham, Lord Chief Justice of England and Wales, em obra intitulada The Rule of Law, ao tratar da necessidade de a lei - aqui compreendida em sentido amplo - ser clara e previsível e sua correlação com a decisão de empresas internacionais em investir em determinado país, foi muito feliz ao sustentar que: "the third reason is rather less obvious, but extremely compelling. It is that the successful conduct of trade, investment and business generally is promoted by a body of accessible legal rules governing commercial rights and obligations. No one would choose to do business, perhaps involving large sums of money, in a country where the parties´ rights and obligations were vague or undecided."

E isso só ocorre quando os mecanismos e instrumentos apropriados, largamente adotados em outros países que têm uma cultura regulatória consolidada, são aplicados de forma confiável e previsível. No passado mais recente, algumas medidas foram implementadas nesse sentido. Em 2018, seguindo as melhores práticas regulatórias internacionais, a Casa Civil da Presidência da República editou as Diretrizes Gerais e Roteiro Analítico Sugerido para Análise de Impacto Regulatório (AIR) e o Guia Orientativo para elaboração de AIR. Em 2019, duas peças legislativas específicas foram aprovadas pelo Congresso Nacional, quais sejam, a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica (Lei Federal nº 13.874) e a Lei das Agências Reguladoras (Lei Federal nº 13.848), determinando, pela primeira vez, a obrigatoriedade da realização da AIR quando da adoção e alteração de atos normativos de interesse geral dos agentes econômicos, consumidores ou usuários dos serviços prestados.

É de se reconhecer que parte do caminho foi percorrido. O marco regulatório brasileiro é suficientemente prescritivo para que os órgãos reguladores adotem os mecanismos de accountability e legitimação de suas funções regulatórias. O momento atual não é mais de estabelecer o "quadro-normativo", mas sim cultural: precisamos aprimorar nossa cultura regulatória para evitar retrocessos e a interferência indevida de outros Poderes ou do controle externo sobre a atividade-fim das agências reguladoras brasileiras.

Pode-se citar quatro casos recentes que ilustram o funcionamento ineficiente do nosso Estado Regulador: (i) a edição relâmpago de uma lei ordinária, pelo Congresso Nacional, permitindo o uso da substância "fosfoetanolamina", também conhecida como "pílula do câncer"; (ii) a inclusão de emenda parlamentar no bojo da Medida Provisória nº 863, proibindo a cobrança avulsa pelas bagagens no transporte aéreo; (iii) a encampação, pelo município do Rio de Janeiro, do serviço público de rodovia municipal, sem o devido processo legal e ao arrepio do bom senso e da razoabilidade; e (iv) a edição de normas administrativas, em âmbito federal, regulando o serviço público de transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros.

Nos dois primeiros, tem-se a avocação irrefletida pelo legislador ordinário de determinado aspecto de um sistema regulado, submetido a uma agência reguladora setorial especializada. No caso da "fosfoetanolamina", o Supremo Tribunal Federal (STF), no bojo da ADIn 5501, foi muito feliz em reconhecer que a atuação legislativa mitigou de forma indevida a competência regulatória da Anvisa e colocou em risco o próprio sistema regulado. A "reserva do regulador" ou "reserva da administração" impede a substituição do juízo essencialmente técnico a cargo do órgão regulador por um político, exercido pelo legislativo, sob pena de violação ao princípio da separação dos poderes. O mesmo raciocínio jurídico-regulatório poderia ser exportado para o caso da franquia de bagagem, caso a emenda não tivesse sigo objeto de veto por parte do Presidente da República, posteriormente mantido pelo Congresso. Tratou-se, pois, de algum grau de deferência legislativa a posteriori.

A tentativa de encampação forçada da Linha Amarela, no município do Rio de Janeiro, é exemplo de um populismo regulatório que não deveria existir em um país que tem se esforçado para atrair investidores nacionais e internacionais para projetos de infraestrutura. A cláusula constitucional do devido processo legal deveria ser suficiente para afastar aventuras populistas como esta, cujo efeito não pode ser outro senão a retomada do serviço público pelo particular e a indenização pelo erário dos danos patrimoniais causados.

Por fim, é igualmente digno de nota a recente Resolução nº 71 do Conselho do Programa de Parcerias de Investimentos (CPPI), que buscou alterar as políticas públicas voltadas para o serviço público de transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros, e a Deliberação nº 955, editada pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), na esteira das orientações e diretrizes traçadas pelo CPPI. Tanto a Resolução CPPI nº 71 como a Deliberação ANTT nº 955 foram redigidas e publicadas sem a desejável participação social dos agentes regulados e da sociedade, indo na contramão das melhores práticas regulatórias e das próprias diretrizes constantes da Lei da Declaração de Direitos de Liberdade Econômica.

Nesses quatros exemplos, é possível enxergar uma "falha matriz": a falta de debate e participação social na tomada de decisão estatal. O mercado não pode enxergar a regulação brasileira como um "banana-boat" - pegando emprestado a célebre expressão adotada pelo Ministro Humberto Gomes de Barros em seu voto no AgRg no Resp nº 382.736/SC, variando aleatoriamente de direção, a depender das forças da natureza. O Estado Regulador brasileiro precisa ser confiável e previsível para passar os sinais econômicos corretos para investidores. Mas, para isso, não bastam apenas legislações prescritivas; precisamos fortalecer a nossa cultura regulatória, o que naturalmente levará a uma deferência legislativa ou judicial maior às decisões técnicas dos órgãos reguladores e reduzirá as medidas populistas.

Fernando Villela de Andrade Vianna, sócio do setor de Direito Público, Regulação e Infraestrutura do Vella Pugliese Buosi e Guidoni (VPBG) (Imagem: Divulgação)

Para saber mais sobre Direito Regulatório no universo de pesquisa do Análise Advocacia 500, clique aqui.

Agências ReguladorasDireito PúblicoDireito RegulatórioInfraestruturaVella Pugliese Buosi e Guidoni (VPBG)