Recentemente a Ministra dos Esportes, Ana Moser, declarou em uma entrevista de forma categórica: os eSports não são esportes! Sustentou que os treinos dessa prática são mais atinentes à indústria de entretenimento, equiparando a carreira dos jogadores à dos artistas do ramo, como a Ivete Sangalo.
A conclusão da Ministra não poderia estar mais certa, de fato, os eSports no Brasil não podem ser legalmente tratados como esportes. Me atreveria a dizer que a justificativa do motivo não ficou clara a todos, mas o raciocínio geral está correto.
Antes de me explicar melhor, primeiro quero esclarecer uma dúvida que muitos devem ter: afinal, essa discussão se os eSports podem ou não ser considerados esportes é importante ou só semântica?
É importante sim, existem no Brasil diversas leis que regulamentam os esportes, desde a Lei Pelé, ao Estatuto do Torcedor e até mesmo a Lei Geral do Esporte atualmente em discussão no Congresso. Se os eSports forem considerados legalmente como esportes no Brasil, importaremos à essa prática todo esse arcabouço normativo.
Logo, a pergunta se ambos são materialmente similares e podem ser regulados pelas exatas mesmas normas se torna o cerne da questão.
Nesse ponto, o argumento de fundo da Ministra está correto, a questão real não é se os eSports podem ou não ser considerados como esportes no Brasil, o ponto é que ambos são, em sua natureza, completamente distintos.
Diferentemente de qualquer outra modalidade esportiva, os eSports são proprietários e isso tem consequências tão significativas que afastam qualquer chance de ambos serem regulados pelas mesmas normas.
Fazendo um paralelo com os esportes tradicionais, nos eSports, a "bola tem dono". Diferente dos esportes tradicionais, os jogos eletrônicos passam longe de ser uma manifestação espontânea e lúdica do ser humano. O jogo em si é proprietário e o direito de jogar é concedido e limitado aos termos propostos pela publicadora.
Os eSports não são nada mais do que a exploração competitiva formal de um jogo eletrônico. O direito de explorar o jogo (bem como os seus personagens, nome, etc.) em si é o maior ativo comercial desses campeonatos e depende de autorização da publicadora do jogo. Qualquer publicadora envolvida no setor enfrenta o constante desafio de equilibrar as suas iniciativas inovadoras em eSports, com a imagem cuidadosamente traçada para o jogo perante o seu mercado consumidor. Permitir a terceiros (como confederações e outras entidades de administração do desporto) interferir nesse equilíbrio (ao imputarem regras de como os campeonatos podem ser realizados) ofende a propriedade das publicadoras e não só poderá ser desnecessário como ineficaz e desastroso para o mercado.
Trazendo isso tudo para a nossa realidade legislativa, a Lei Pelé - e qualquer outra legislação esportiva - foi pensada com foco em regular as características e desafios associados à prática profissional de esportes tradicionais (ou seja, de práticas competitivas não proprietárias). De fato, os próprios princípios do desporto no Brasil conflitam com os eSports e com as garantias do próprio ordenamento jurídico brasileiro, principalmente à propriedade intelectual dos jogos eletrônicos. O mesmo pode ser dito em relação ao papel das entidades de administração do desporto ou até mesmo ao direito de arena.
As palavras da Ministra Ana Moser foram mal interpretadas por alguns como uma falta de interesse em investimento estatal nos eSports ou desmerecimento do esforço dos seus jogadores (que é sim equiparável aos dos atletas profissionais), mas entendo que essas visões se perderam na superficialidade do argumento, sem se aprofundar no real embate que existe no setor.
Não descarto a necessidade de se discutir a necessidade de uma regulamentação específica para os eSports, inclusive com o estabelecimento de incentivos fiscais. No entanto, a potencial regulação de tais práticas no Brasil, deverá ser específica e refletir essa nova realidade, respeitando os direitos dos titulares de jogos eletrônicos e o seu ecossistema e jogadores.
O Brasil já é hoje o quinto maior mercado de videogame (por número de jogadores) do mundo, sendo o maior e mais crescente da América Latina1. Estamos caminhando para a consolidação da importância do Brasil no cenário de eSports e me preocupa muito trazer, de forma impensada, insegurança jurídica a um mercado que economicamente tem um potencial imenso no país.
As palavras da Ministra Ana Moser, apesar de curtas, foram importantes para começar a trazer luz à tentativa de se encaixotar um novo mercado em um formato pré-estabelecido que não foi pensado ou desenvolvido para regulá-lo. Atualmente no Congresso existem diversos projetos de lei que visam, de alguma forma, equiparar legalmente os eSports aos esportes tradicionais ou até mesmo impor a representação do setor por uma confederação que não é sequer reconhecida por grande parte do mercado. Ainda, no Senado caminhamos para a votação de uma alteração ao projeto da Lei Geral do Esporte, que, sem sequer aparentemente avaliar qualquer impacto setorial, apenas equipara os eSports aos esportes.
Enfaticamente torço para que o Congresso se convença que os eSports são só eSports mesmo, e passe a olhar para essa prática à luz de suas inúmeras particularidades.
Vanessa Pareja Lerner concentra sua atividade profissional no mercado de tecnologia, videogames e mídia & entretenimento, além de ter ampla experiência com contratos comerciais de diversos setores, como varejo e indústria. Vanessa assessora desde startups até grandes empresas de diversos setores em demandas relacionadas a contratos comerciais em geral, inclusive na estruturação de negócios, avaliação de riscos e negociação de contratos. Atua também de forma especializada no mercado de licenciamento, tecnologia, videogame, eSports, entretenimento e em demandas envolvendo propriedade intelectual, proteção de dados, direito de imagem, franquia, publicidade, consumidor, transferência de tecnologia, entre outros.
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