Os desafios da carreira jurídica corporativa | Análise
Análise

Os desafios da carreira jurídica corporativa

Por Cintia Santos, vice president general counsel & compliance officer para América Latina da AccorInvest

11 de November de 2020 8h

A escolha do Direito como profissão não foi algo simples para mim. Desde pequena, o assunto já era objeto de pesquisas pessoais sobre mercado de trabalho, oportunidades, investimentos necessários e retorno de cada opção de carreira. Além disso, me dedicava a confirmar aptidões, talentos e o que poderia me trazer satisfação pessoal todos os dias. E, foi assim que descobri, aos dezoito anos de idade, que, embora desejasse, a carreira jurídica exigiria investimentos financeiros e de tempo que, para alguém de origem humilde como eu, não seria possível suportar naquele momento.

Esse foi, então, o primeiro desafio que enfrentei: os elevados custos de uma graduação em Direito em uma instituição privada de relevância e de tradição no país. Nessa ocasião, eu já trabalhava como assistente administrativa em uma empresa do segmento metalúrgico e, após tratativas com referida empresa e em reconhecimento pelo trabalho que eu realizava ali, a companhia assumiu o compromisso de custear a minha graduação em Direito. Embora com o subsídio financeiro obtido, me deparei com o segundo desafio: minha falta de preparo para um curso superior com alto nível de exigência.

Estudei em escolas públicas da periferia da zona sul de São Paulo, sabia que o conteúdo ao qual tive acesso no ensino fundamental e no ensino médio não seriam suficientes e não me dariam a bagagem necessária para fazer uma graduação em Direito na faculdade almejada. Além disso, um desafio constante na minha vida profissional foi me deparar quase que diariamente com a ausência ou a mínima presença de negros no curso de Direito e, posteriormente, no próprio mercado jurídico. Desde o início do curso até o primeiro estágio em contencioso cível em uma das grandes bancas do país, eu sempre fui a única estudante ou profissional negra.

Eu ainda precisava lidar com um outro desafio relacionado a minha realidade social e financeira versus a realidade social e financeira dos colegas do mercado jurídico, que era uma disparidade. A formação deles e a minha, a começar pelo ensino fundamental e médio em escolas públicas versus em instituições privadas, e a questão dos idiomas sempre me mantinham em estado de alerta, ou seja, com um lembrete constante acerca do quanto eu deveria estudar e me dedicar para ter acesso as mesmas oportunidades que eles.

Havia colegas, estagiários, que já dominavam dois, três, ou até quatro idiomas e, por vezes, cursavam duas faculdades ao mesmo tempo. Contudo, essa realidade de aproximadamente 15 anos atrás não parece ter mudado muito quando comparada aos problemas que vemos atualmente no Brasil. Isso mostra que as dificuldades não eram exclusivamente minhas e tão pouco tornaram a minha trajetória mais especial do que a de muitos outros. Em maior ou menor grau de dificuldade, essa realidade pode ter sido, é, ou será a de muitos jovens brasileiros. Não tenho dúvida de que o racismo e a desigualdade social foram e continuam sendo presentes, de forma estrutural e severa em nossa sociedade, que segue sem cuidados e investimentos efetivos para oferecer educação de qualidade e gratuitamente.

Assim, surge a questão acerca de como enxergar tudo isso desde a perspectiva de uma mulher, jovem, negra e em uma posição de gestão jurídica estratégica, responsável por uma região com seis países da América Latina, em uma multinacional do segmento imobiliário-hoteleiro. Atualmente, uma palavra resume: difícil.

A carreira jurídica ainda é muito elitizada no país e de difícil acesso. Isso, não só em razão da dificuldade de ser aprovado na universidade, especialmente em uma instituição pública, mas, também, em virtude dos desafios para se manter no curso e, posteriormente, na carreira jurídica. São necessários investimentos constantes de tempo e financeiros em atualizações técnico-jurídicas e em desenvolvimento de habilidades profissionais.

Por vezes, diante das dificuldades, a tendência de muitos estudantes e profissionais dessa área é de se sentirem sozinhos ou isolados, quando na realidade, o que precisa haver é uma conscientização da oportunidade, do senso de pertencimento e de que aquele ambiente não é apenas para um determinado grupo de pessoas da sociedade. Lembro de quando, em um curso para executivos, estudei fora do país com profissionais do mundo todo que ocupavam cargos de liderança de pessoas e de gestão de negócio. Eu era a única mulher negra em uma turma de aproximadamente 30 alunos, predominantemente de homens.

Naturalmente, havia um desconforto da minha parte, estava apreensiva, me questionando se estava qualificada para estar ali, mas logo as dúvidas foram substituídas pela certeza de que sim, de que eu poderia e, mais do que isso, de que eu deveria estar ali. Ali era o meu lugar também! Eu havia sido aprovada no processo seletivo da universidade como os outros e tinha experiência e capacidade profissional tanto quanto eles.

Diante tudo isso, creio ser construtivo refletir acerca de como superar esses desafios e, para tanto, compartilharei um pouco do que já aprendi até aqui, consciente de que ainda há muitos desafios a frente. Nesse sentido, uma primeira lição aprendida é: precisa estudar, estudar e estudar. Eu estudava muito, o tempo todo e continuo até hoje. Afinal, eu precisava recuperar uma defasagem na escrita em português, precisava aprender outros idiomas, como inglês e espanhol, além de construir uma base sólida de conhecimento jurídico generalista, todos esses requisitos imprescindíveis para uma carreira jurídica corporativa em uma multinacional.

A segunda lição aprendida que tenho o prazer de compartilhar é sobre a importância de cultivar bons relacionamentos. Há profissionais e gestores extraordinários que enriquecem nossa trajetória, nos impactam e fazem grande diferença em nossa caminhada, seja inspirando-nos tecnicamente e como pessoas. Tive a dádiva divina de encontrar vários deles em meu caminho. Pessoas com ética, senso de cidadania, igualdade, respeito e generosidade, que fizeram e fazem muita diferença em minha carreira até hoje, já que muitos deles se tornaram pessoas do meu circulo pessoal de amizades.

Foi assim que a minha curiosidade, ainda durante a faculdade, pela área corporativa foi incentivada. Havia compartilhado com uma advogada de escritório, naquela época minha gestora direta, que gostaria de explorar a área corporativa e ela prontamente me colocou em contato com uma advogada corporativa de uma multinacional de grande porte no segmento de energia. Não pensei duas vezes. Participei de um processo seletivo para estágio, fui aprovada e, pouco tempo depois de iniciar o estágio, fui efetivada como assistente jurídica, mais tarde, ao ser aprovada no exame da ordem de advogados do Brasil, como advogada de uma das equipes dessa empresa de energia.

É preciso uma boa dose de humildade para aceitar e perceber o quanto precisamos e podemos aprender através dos outros. Sempre valorizei e cultivei bons relacionamentos com profissionais sérios, que se dispunham em ensinar e em agregar valor aos colegas e ao ambiente de trabalho. Pessoas assim se desenvolvem e não criam embaraços para o desenvolvimentos dos outros. Muito pelo contrário, estão sempre incentivando aqueles ao seu redor a serem melhores profissionais e melhores pessoas. 

Eu queria aprender, eu queria crescer e eu já sabia que a carreira corporativa seria o caminho que me traria realização pessoal. Precisamos saber identificar e estar atentos a essas oportunidades de relacionamentos e nos esforçarmos para sermos essas boas oportunidades para os outros também.

Outra lição aprendida é que bons relacionamentos sem conhecimento, sem competência, sem estudo, sem esforço e sem uma boa dose de resiliência e de persistência também não são suficientes para trilhar uma carreira jurídica corporativa. O advogado ou a advogada, além de estar atento às necessidades técnicas da área e do negócio que deseja atuar e de se esforçar para estar pronto para atendê-las e, quando possível, antecipá-las, precisa desenvolver também os chamados soft skill.

Boa comunicação, solução de problemas, administração de ambiente com pressão, flexibilidade e adaptabilidade, trabalho em equipe, gestão do tempo, escuta ativa para críticas e atitude positiva, dentre tantas outras competências, são essenciais para o advogada que almeje a carreira corporativa. A convivência com departamentos diversos e com profissionais que não são da área jurídica demanda uma atenção adicional e diária aos advogados corporativos.

O cliente está sempre perto, avaliando e solicitando o profissional a cada minuto. Precisa haver versatilidade, assertividade e profundidade. Estudar e desenvolver um parecer sobre algum tema é tão fundamental quanto a agilidade em uma resposta acertada. Um posicionamento estruturado para evitar um risco ou para administrá-lo da melhor forma possível é tão necessário quanto a habilidade de saber comunicá-lo aos clientes internos.

Conscientização

Cientes dos problemas de uma sociedade desigual, seja por questões sociais, de raça ou de gênero, como a existente, o que, por si só, não contribui para que a carreira jurídica corporativa absorva profissionais de forma mais igualitária, é necessário haver uma conscientização de que o esforço, a dedicação e a determinação são importantes, mas que, além disso, o profissional precisar assumir a sua realidade e a sua condição e estar disposto a agir efetivamente para que elas mudem.

Não se deve temer ou envergonhar-se por não se estar, por vezes, tão preparado tecnicamente como o esperado, por necessitar financiamento para o desenvolvimento da carreira, por precisar aprender com outros profissionais como desenvolver soft skills. Na realidade, uma vez identificadas essas necessidades, surge a oportunidade de agir de forma concreta, direcionada e ordenada para superá-las.

Hoje, como gestora de pessoas, posso assegurar que os advogados corporativos qualificados e ou com potencial de desenvolvimento são aqueles com capacidade de criar e de aproveitar as oportunidades, que dão atenção à sua carreira e que se assumem protagonistas dela, que estão dispostos a aprender com seus erros e com seus acertos, que respeitam seus colegas e que desejam contribuir para o sucesso da empresa, entendendo-o como seu.

Conduta empresarial

No tocante àqueles que desejam ingressar na carreira jurídica corporativa ou manter-se nela, é fundamental que saibam escolher e avaliar cuidadosamente as empresas às quais deseja dedicar seu tempo e seus esforços. Há empresas que poderão ser alavancas para o sucesso ou para a estagnação.

Esperamos que empresas mudem suas condutas ao longo do tempo, que se tornem mais inclusivas, mas é preciso refletir, de forma realista, se isso irá ocorrer e em quanto tempo versus quanto a carreira do profissional pode esperar que essa transformação verdadeiramente ocorra de forma perceptível e gradativa em determinadas empresas.

Dediquem-se às empresas que acolhem, investem, criam e dão oportunidades e sabem reconhecer os esforços e progressos de seus colaboradores independentemente de cor, raça, gênero ou condição social.

AccorInvestCintia Santosdepartamento jurídicodesigualdadeDireitojurídico corporativoracismo