Advogados, em sua essência, foram treinados para lidar com adversidades. De certa forma, a existência do Direito pressupõe uma sociedade que não consegue resolver seus problemas por conta própria, sem a existência de uma guarda legal. "Fato, valor e norma", tríade bastante conhecida pelos operadores do Direito, é uma sistematização que opera, em seu próprio ritmo, analisando contextos sociais e construindo as suas mais adequadas soluções. O que ocorre, contudo, quando fatos e valores entram em uma espiral crescente de mudanças, impossível de ser acompanhada pela forma tradicional de criação de normas?
Dois temas podem ajudar a responder tal pergunta: inteligência artificial e pandemia do coronavírus. A tecnologia de sistemas cognitivos (IA), que após um longo inverno retoma um avanço sistemático em direção a tarefas cada vez mais autônomas e independentes de seres humanos; a doença avassaladora (COVID-19) que coloca economias em cheque e impõe um grau de incerteza nunca antes vivido na sociedade - esses assuntos tão díspares, quando postos sob a ótica do profissional do Direito, se tornam mais semelhantes do que aparentam.
A IA vem ganhando força no meio jurídico por meio de uma ação dupla sobre o cotidiano de seus profissionais: primeiro, aparece como uma importante ferramenta de apoio para tomada de decisões e execução de tarefas repetitivas. Analytics, geração automatizada de documentos e leitura de contratos em lotes são apenas alguns exemplos de soluções jurídicas que empregam inteligência artificial como tecnologia de base. Segundo, faz-se presente nas mais diversas esferas da sociedade; da assistente virtual a veículos cada vez mais autônomos, a inserção de máquinas capazes de interagir diretamente com pessoas gera desafios para o profissional do Direito da atualidade.
Em paralelo, o fator propulsor daquela que talvez seja a maior e mais rápida mudança de hábitos da história recente. A pandemia do novo coronavírus, identificada na Ásia no final de 2019, espalha-se rapidamente pelo globo e, consigo, traz a necessidade de um grande isolamento social para ser contida. Do dia para a noite, vemos empresas sendo totalmente transferidas para o meio virtual - não como uma modernização de seus negócios, mas uma questão de sobrevivência. Comércios quase totalmente digitais, restaurantes operando via aplicativos de entrega e, como não poderia deixar de ser, escritórios de advocacia completamente virtuais, em home office de seus profissionais.
E é exatamente a profundidade e a rapidez de ambos os fenômenos - IA e coronavírus - que os faz tão semelhantes ao prisma do profissional jurídico. Ambos emergem como grandes símbolos que escancaram a dura realidade de qualquer profissão da atualidade: ninguém, absolutamente ninguém, está isento às mudanças. Ter uma rápida capacidade de adaptação já não é mais um diferencial: é competência indispensável para profissionais de todas as indústrias, inclusive a jurídica. Mas qual lição podemos tirar dessa comparação?
A resposta é mais simples do que parece: com o impacto da pandemia, aprendemos que é possível, sim, reestruturar hábitos e procedimentos em velocidade recorde. Em questão de dias, vimos instituições inteiras alterarem a forma como operam e, apesar de difícil, a dor foi rapidamente superada sem maiores danos. A crise do coronavírus nos ensinou a levar reuniões físicas ao meio digital, a mantermos produtividade trabalhando de casa, a repensarmos a necessidade de viagens e encontros presenciais para a resolução de demandas. Cortes se adaptaram a tarefas remotas e até mesmo o poder legislativo passou a executar seus debates por meio de sistemas de videoconferência. Diante da maior ameaça de nossa geração, soubemos rapidamente lidar com suas imposições fundamentais para a sobrevivência. Por que, então, continuamos a enxergar a inteligência artificial como uma barreira intransponível?
Esse receio se deve ao fato de nenhuma tecnologia até então ter sido capaz de executar autonomamente algumas tarefas antes realizadas por advogados. É nesse contexto que a inteligência artificial emerge o fantasma da substituição, tão temida pelos profissionais da atualidade - e que não chega perto de ser verdade.
Isso porque os sistemas de IA podem, mas não devem decidir por conta própria. Ainda assim, são valiosos instrumentos para orientação de tomada de decisão do profissional do Direito, que ganha atualmente uma importante ferramenta para aliar a precisão das máquinas com as características humanas que elas nunca serão capazes de ter, como empatia e sensibilidade, tão valiosas para a prática jurídica. No fim do dia, o advogado humano sempre será imbatível para que o Direito atinja sua função social original.
Se a pandemia nos provou que somos perfeitamente capazes de nos adequar às mudanças, ela nos convida a abraçar o novo com mais coragem do que antes. Com sistemas cada vez mais eficientes e intuitivos, fica claro que essa é uma realidade inquestionável para o futuro da profissão, muito mais relacionada à oportunidade do que a uma ameaça. Aqueles que não a enxergarem dessa forma correm sério risco de defasagem.
Aprendamos com o que vivemos na pandemia: por sobrevivência, adaptar-se não é mais opção.