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O que é Direito Desportivo?

Por André Sica, sócio do CSMV Advogados

11 de January de 2021 8h

Responder à pergunta do título parece simples, mas tem se mostrado uma tarefa mais complicada do que se imagina. É comum nos depararmos com a confusão de conceitos quando vemos profissionais e mesmo escritórios rotulando as suas áreas de atuação enquanto inerentes ao Direito Desportivo, sem necessariamente se atentarem ao que a atuação neste ramo tão específico representa no dia a dia.

Suponhamos que um advogado tenha atuado em um projeto de construção de uma grande arena de partidas de futebol, contratado por um grande clube brasileiro. Teria este advogado praticado o Direito Desportivo? Não, de forma alguma.

Apesar de prestar serviços a uma entidade desportiva, o responsável por esse importante projeto não chegou a, efetivamente, fazer uso do Direito Desportivo enquanto ramo jurídico. Na verdade, sua prática pode ter sido norteada maciçamente por normas gerais do Código Civil, Códigos de Obras e Edificações pertinentes, e até legislação trabalhista, sem que tenha se apoiado em absolutamente nada do Direito Desportivo.

E se o mesmo advogado fizesse um belíssimo contrato de Naming Rights dessa arena? Mais uma vez, nenhuma das regras que regem o Direito Desportivo teriam, necessariamente, sido acionadas, já que estaríamos falando, nesse caso, de uma atuação tradicional no Direito Civil contratual.

Poderíamos colecionar parágrafos descrevendo erros conceituais sobre a prática de Direito Desportivo. Entretanto, em um universo tão desafiador, uma premissa é bastante simples: o esporte, de fato, se comunica com diversas áreas de prática jurídica, e o Direito Desportivo é uma delas. Específica, autônoma, e ainda exercida por raros escritórios brasileiros especializados.

A HISTÓRIA

O Direito Desportivo foi inaugurado oficialmente no Brasil em 1941, com o Decreto-Lei nº 3199/41 que criou o Conselho Nacional de Desportos (CND), mas assumiu seus contornos de independência jurídica em 1988 com a promulgação da Constituição Federal, que em seu artigo 217 definiu expressamente o esporte como bem público, e trouxe ao ramo recém criado duas de suas pedras fundamentais: o basilar princípio da autonomia das entidades desportivas; e a definição da competência da Justiça Desportiva.

Subsequentemente à essa emancipação do Direito Desportivo, foram publicadas a Lei Zico, em 1993, e a Lei Pelé, que a substituiu em 1998. Ambas são leis federais cujo escopo é a normatização geral das relações jurídicas do esporte. Finalmente, em 2003, seriam acompanhadas do Estatuto do Torcedor, também lei federal dedicada a criar uma espécie de Código de Defesa do Consumidor voltado exclusivamente ao esporte enquanto atividade econômica. Em linhas mais básicas, essa é a legislação de cabeceira dos advogados militantes em Direito Desportivo.

Até aí, está fácil. A complexidade começa a existir quando tratamos do Direito Desportivo em âmbito internacional ou das suas normas associativas, de natureza infralegal. Aos curiosos, interessante comentar que o Direito Desportivo se trata, hoje, de um dos ramos do Direito pátrio que mais proporciona interlocução com normas internacionais - chegando, no limite, a ser responsável pela flexibilização do tão importante princípio da Soberania Nacional.

Isso porque quem edita as normas gerais de cada uma das modalidades esportivas é a sua respectiva confederação internacional (por exemplo, a FIFA, FIVB, FINA, FIA, etc.). Assim, eventual país participante de um dos eventos por elas organizados pode até discordar de uma ou outra previsão, no entanto, tal discordância tem maiores chances de resultar na sua desfiliação do que, efetivamente, repercutir na modificação da previsão contestada.

Esse sistema jus-desportivo internacional ainda possui órgãos judicantes próprios que, em instância final, terminam no famoso CAS (Court of Arbitration for Sport) na Suíça, constituindo um verdadeiro universo jurídico paralelo. Um advogado brasileiro pode conhecer e atuar em Direito Suíço? No CAS pode e deve! Não bastasse a atuação internacional, a diversidade de normas associativas/federativas dentro do país também não é menos complexa. Imagine que todas as entidades administradoras do esporte nacional (por exemplo, as Confederações Brasileira de Futebol, Vôlei, Basquete ou Atletismo) possuem seus regulamentos próprios, que podem se subdividir em estatuto, regulamento geral e regulamento específico de competições, código de ética, resoluções, e vários outros instrumentos de regulamentação, criando um microssistema normativo para cada uma das respectivas modalidades.

Tudo isso sem olvidar que questões afetas à disciplina e regulamentos de competições serão, por força constitucional (todos se lembram do mencionado artigo 217 da CF?), julgadas pelo respectivo Tribunal de Justiça Desportiva de cada respectiva modalidade. Nesse último caso, existe, de fato, um tribunal para cada modalidade, cujos julgamentos se dão à luz do Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD).

Isso é o Direito Desportivo. Um amplo ecossistema de normas desconhecidas para muitos, e um prazer imensurável de poucos. Entretanto, é importante que se esclareça que a palavra "poucos" aqui não é empregada de forma positiva, no sentido de "privilégio" de alguns. Na verdade, a conotação é negativa porque o Direito Desportivo realmente ainda não se encontra acessível a todos os advogados, em razão da escassez de recursos do mercado que o regula.

Parte disso resulta do fato de que, não é novidade, o esporte no Brasil ainda seja tratado de forma amadora. Um amadorismo que tem como principais consequências a pouca circulação de capital no esporte brasileiro - salvo claras exceções de modalidades que concentram grande parte dos investimentos - e; pior que isso, a ineficiência de boa parte dos gestores envolvidos na sua administração. Como resultado dos baixos valores disponíveis e da falta de qualificação dos gestores, a assessoria jurídica não raro é vista como despesa e não como investimento.

Nesse contexto, por exemplo, honorários de grandes bancas são impeditivos, alijando-as da prática do Direito Desportivo stricto sensu. De qualquer forma, felizmente, a evolução deste mercado é sensível, e vem dando passos firmes. Clubes centenários, que nasceram na forma de associações civis sem fins lucrativos, passam aos poucos a se transformar em empresas, surgem novas modalidades como o esporte eletrônico - que, desde sua raiz, aplica os mais modernos conceitos de gestão e governança - o mercado de direitos de transmissão antes fechado vem se abrindo, e investidores estrangeiros passam a ver o mercado esportivo brasileiro como uma grande oportunidade.

Portanto, a conclusão encorajadora sobre o universo do Direito Desportivo, é que o potencial de sua curva de crescimento é enorme. E, com esse crescimento, a atuação do advogado especialista se fará cada vez mais necessária.

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