Em tempos de transformação acelerada, o maior obstáculo à inovação não está apenas na escassez de capital ou de talentos. Muitas vezes, o desafio está na própria estrutura regulatória. O Direito, que deveria ser um instrumento de estabilidade institucional, acaba funcionando como freio para modelos de negócio inovadores. Mas essa tensão entre legalidade e disrupção não é inevitável. Com estratégia, o Direito pode ser parte essencial da construção de soluções novas.
Tenho acompanhado de perto esse movimento no Brasil, especialmente em setores que vivem sob forte pressão por modernização. O mercado imobiliário é um bom exemplo. Dois unicórnios brasileiros vêm desse setor.
O QuintoAndar transformou a locação de imóveis residenciais ao eliminar o fiador, digitalizar os contratos e automatizar a gestão de riscos. Tudo isso dentro de um arcabouço jurídico pensado para um cenário analógico e cartorial. O sucesso não veio apenas da tecnologia, mas também da capacidade de estruturar juridicamente um modelo que funcionasse na prática, respeitando a legislação vigente.
Isso vale também para a Loft, que integrou compra, venda e reforma de imóveis em uma única plataforma. Para isso, precisou lidar com questões envolvendo responsabilidade civil, registros, intermediação e financiamento. Em ambos os casos, a atuação jurídica não foi um detalhe de bastidor. Foi parte do motor da inovação.
Esse papel do advogado tende a se tornar ainda mais relevante quando falamos de inteligência artificial. Hoje, o Brasil não tem uma regulação específica sobre o tema. Isso abre espaço para que empresas experimentem, testem e escalem soluções com agilidade. Em um ambiente em que a legislação ainda não impôs limites rígidos, a criatividade jurídica pode fazer a diferença entre uma ideia promissora e um negócio de verdade.
Mas essa liberdade também carrega riscos. A ausência de marcos legais claros deixa empresas expostas a incertezas e a sociedade, vulnerável diante de dilemas éticos sérios. Discriminação algorítmica, uso indevido de dados, impactos no mercado de trabalho. Esses são temas que não podem ficar indefinidos por muito tempo.
Na Europa, o debate regulatório avançou com força, mas não sem controvérsias. Recentemente, Joel Kaplan, Chief Global Affairs Officer da Meta (Facebook), criticou publicamente o novo Código de Conduta da Comissão Europeia para modelos de IA de uso geral. Segundo Kaplan, o texto impõe obrigações que extrapolam o escopo do próprio AI Act e cria inseguranças jurídicas que podem inibir o desenvolvimento de modelos de ponta no continente. Ele afirmou que "a Europa está seguindo pelo caminho errado" e que esse tipo de sobreposição regulatória tende a sufocar não apenas as grandes desenvolvedoras, mas também os ecossistemas de inovação que poderiam surgir ao redor dessas tecnologias.
Esse alerta não pode ser ignorado. Regulação em excesso pode asfixiar a inovação, mas a ausência total de regras também é perigosa. O desafio está em encontrar um equilíbrio: construir um ambiente confiável, com segurança jurídica, sem impedir que boas ideias avancem. Nesse cenário, o advogado ganha protagonismo. Ele não pode mais ser apenas alguém que aponta o que não pode. Precisa participar do desenho das soluções, ajudando a estruturar juridicamente modelos que sejam viáveis, éticos e alinhados com os princípios fundamentais.
Essa mudança de postura exige também uma nova formação jurídica. Ainda são raros os cursos que preparam profissionais para lidar com temas como inteligência artificial, proteção de dados, blockchain ou regulação de plataformas digitais. O advogado de hoje precisa traduzir demandas complexas em soluções legais práticas. Precisa saber conversar com engenheiros, reguladores, investidores e, sobretudo, com a sociedade.
Apesar de avanços pontuais, como o reconhecimento de contratos digitais e assinaturas eletrônicas, a atuação do Judiciário brasileiro em temas tecnológicos ainda levanta preocupações. A recente decisão do STF sobre o artigo 19 do Marco Civil da Internet, por exemplo, sinaliza um movimento de intervencionismo judicial que pode gerar insegurança para plataformas e desenvolvedores. Em vez de fomentar um ambiente previsível e propício à inovação, decisões como essa ampliam o risco jurídico em um momento em que o Brasil deveria estar incentivando o florescimento de novas empresas, especialmente no campo da inteligência artificial. Mais do que nunca, é preciso equilíbrio institucional e segurança regulatória para que o ecossistema de inovação possa prosperar com responsabilidade.
O Direito, portanto, não precisa ser um obstáculo à inovação. Quando usado com estratégia e visão, ele pode ser a estrutura de sustentação de novos modelos, inclusive em temas tão sensíveis e estratégicos quanto a inteligência artificial. Em vez de correr atrás das mudanças, o papel do advogado pode (e deve) ser o de ajudar a desenhá-las.
Fernando Zanotti Schneider é o sócio responsável pelas áreas societária, M&A e Contratos e Negociações Complexas do Abe Advogados. Mestre em Administração pelo INSPER/SP com double degree (dupla titulação) pela Nova de Lisboa/Portugal. Especialização em Contratos Empresariais, Fundação Getúlio Vargas - FGV/SP. Bacharel em Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP.
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