Em artigo publicado na revista Veja, "Os desafios pós-lava-jato", em outubro de 2016, tive a oportunidade de defender a cooperação técnica entre órgãos públicos envolvidos com os acordos de leniência e a sua atuação centralizada para recepção de pleitos das empresas, gestão documental e negociação perante as autoridades competentes, uma vez que ... "ao colocar à mesa todas as estruturas estatais hoje trabalhando de forma isolada, surgiria diante das empresas a figura única do Estado. As empresas interessadas e habilitadas a celebrar o acordo se dirigiriam a um ‘balcão único’". Essa proposta foi à época também levada à apreciação da Controladoria Geral da União (CGU) e do Tribunal de Contas da União (TCU), pois as empresas colhidas na corrupção da Lava Jato estavam perdendo mercado, ficando inviabilizadas, aumentando o desemprego e causando prejuízos ao país por não poderem concluir os serviços para os quais haviam sido contratadas.
Agora, conforme notícia do Valor Econômico de seis de agosto de 2020, que trata do recente acordo de cooperação técnica firmado entre a CGU, a Advocacia Geral da União (AGU), o TCU e o Ministério da Justiça (MJSP), foi mencionado que: "A proposta cria um ‘balcão único’ de negociação para simplificar e agilizar o fechamento de acordos, já que hoje a empresa tem de negociar com diferentes instituições. A ideia é que todos os órgãos envolvidos na negociação assinem o ‘acordo de cooperação técnica’ para garantir que o novo padrão será seguido, sem divergências."
A anunciada centralização de esforços das autoridades competentes deveria proporcionar que as empresas implicadas em corrupção pudessem pleitear e negociar um amplo e eficaz acordo de leniência, previsto especialmente na Lei Anticorrupção (nº 12.846/2013). A tragédia das empresas apanhadas na Lava Jato que faliram ou são hoje uma fração do que representaram no passado ocorreu, em parte significativa, pela ausência de mecanismos eficazes de saneamento e poucas mantiveram alguma expressividade.
Nos Estados Unidos e na Europa há punição exemplar dos administradores corruptos, busca da reparação de danos,implantação de programas rígidos de compliance e muitas vezes de monitoria de integridade externa. No Brasil, são indiscutíveis os êxitos alcançados pela operação Lava Jato e a sua inestimável contribuição para o combate à corrupção. Sem dúvida, a prisão dos malfeitores e de políticos envolvidos com os subornos era necessária para a reconstrução de bases éticas nas relações com o poder público e as estatais. Porém, a questão relativa à sobrevivência das empresas do setor privado envolvidas nos malfeitos não podia ser adiada. Este foi o grande desafio pós-Lava Jato. Era necessário readequar os empreendimentos para atuarem honestamente, observando padrões de excelência nas políticas de integridade. E aqui entram os acordos de leniência.
Diversas autoridades brasileiras têm competências que se sobrepõem umas às outras, gerando investigações paralelas e, quando não, conflitantes. Tais autoridades têm alçadas constitucionais ou legais indisponíveis, sem haver subordinação, critério de preferência ou de coordenação entre elas. É, pois, uma relação horizontal de jurisdições, com todas elas podendo aplicar ou requerer a inidoneidade administrativa da empresa, o que a impediria de adimplir ou firmar novos contratos públicos.
No campo da corrupção e ilícitos relacionados, os objetivos das várias agências públicas envolvidas podem variar com relação a um mesmo fato apurado. Por consequência, quando buscam um acordo de leniência que lhes permitisse sanear os problemas de integridade e possibilitar sua sobrevivência, as empresas vão de um órgão público para o outro para negociar acordos que nunca terminam por resolver satisfatoriamente o problema. Se firmam um acordo de leniência com o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), com base na Lei nº 12.529/2011, o Ministério Público Federal (MPF) não aceita. Se firmam com o MPF, a CGU e o TCU não concordam. E assim vai. Solucionar este problema é absolutamente imprescindível para permitir que o Brasil eleve o seu nível de integração às melhores práticas internacionais, punindo os malfeitores sem destruir as empresas, os empregos e os negócios.
Daí nos últimos anos as autoridades públicas terem sido instadas a encontrar alguma forma de ampla cooperação técnica e harmonização dos requisitos, das práticas de negociação, da apresentação de documentos e coordenação das exigências para conclusão de acordos de leniência. Isto possibilitaria a identificação do "balcão único" para as empresas proporem e daí negociarem os acordos de colaboração empresarial, de forma a atender, organizadamente, às exigências decorrentes das diferentes autoridades envolvidas.
No entanto, apesar de o presidente do TCU ter afirmado que: "trata-se do mais importante acordo de cooperação da minha vida", o ajuste de cooperação técnica que anunciou novas regras de coordenação para os acordos de leniência ficou bem aquém do necessário para equacionar os vários obstáculos enfrentados pelas empresas.
Embora autoridades públicas tenham enaltecido a pretensão de se criar o "balcão único", o MPF e o CADE não assinaram o termo de cooperação técnica. Pelo que foi noticiado, o CADE não participou ativamente das negociações, que não envolveu matéria anticoncorrencial. O MPF, conquanto tenha demostrado inicialmente que poderia concordar com a cooperação técnica, concluiu por não firmar o documento.
Sem o MPF e o CADE o recente acordo de cooperação técnica está esvaziado e sua ambicionada eficácia comprometida.
De fato, não haveria dificuldade em ser estabelecida interna corporis a cooperação técnica entre a AGU, a CGU e o MJSP, pois todos integram o Executivo, e portarias conjuntas já regulavam o assunto. Trazer o TCU para o mesmo campo de discussão e concordância foi sem dúvida um êxito parcial importante (já que o tribunal de contas muitas vezes questionou o valor da reparação de danos ao erário objeto de leniências concedidas por outros órgãos). Mas o desafio era (e continua sendo) trazer para o mesmo "balcão" o MPF e o CADE (e eventualmente outros órgãos, como o Banco Central do Brasil (BACEN), a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), empresas estatais e agências regulatórias, o que poderia se dar caso a caso).
O MPF ao longo dos últimos anos firmou a maioria dos acordos de leniência (embora a lei anticorrupção atribuísse tal competência para a CGU). O MPF estendeu as soluções negociadas em termos de ajustamento de conduta (os conhecidos TACs) para alcançarem as questões de corrupção, chamando-os de "acordos de leniência", ainda que tecnicamente não fossem assim considerados pela LAC.
Apesar do protagonismo do MPF, todavia, o anunciado acordo de cooperação técnica afastou o parquet das negociações dos acordos de leniência, deslocando, em geral, a atribuição da promotoria pública para a persecução penal ou ações de improbidade administrativa após concluídas as negociações entre a empresa, a AGU e a CGU (e a aprovação do acordo pelo TCU). Daí a recusa do MPF em, até agora, participar do ajuste entre o Executivo e o TCU, desobrigando-se daquilo que foi objeto do acordo. O CADE, como visto, que enfoca a questão da corrupção pela ótica das infrações contra a concorrência, também não foi parte do documento. Desse modo, longe de criar um abrangente e eficaz "balcão único", o acordo técnico apenas organizou a relação da CGU e da AGU com o TCU, o que é positivo, mas não significa maiores avanços para as empresas. E está longe de arquitetar um compreensivo sistema para coordenação e gestão de negociações, conclusão e acompanhamento do cumprimento dos acordos de leniência.
De fato, dada a complexidade e abrangência das matérias e múltiplas alçadas, dever-se-ia seriamente avaliar a oportunidade de ser estabelecido, por um acordo administrativo, ou por lei, um conselho nacional de integridade corporativa ou semelhante. Esta estrutura administrativa seria formada por representantes dos vários órgãos estatais competentes, respeitando-se as suas respectivas jurisdições, permitindo organizar as propostas, gerenciar documentos e diligências, e concluir os acordos com as empresas interessadas para subsequente homologação pelo Judiciário. Este organismo modernizaria e tornaria mais eficaz o sistema de combate à corrupção no que tange aos acordos de leniência, viabilizando a sobrevivência dos negócios e evitando a repetição de dramas como os que abateram as empresas incriminadas pela Lava Jato.
Os desafios dos acordos de leniência impõem soluções inovadoras. Como são complexos e envolvem numerosas autoridades dos poderes da República, o país não pode ficar silente e passivo ante uma matéria tão importante para a sobrevivência de empresas colhidas em práticas de corrupção, quando for possível e aconselhável seu saneamento. Os acordos de leniência devem fomentar a demissão dos culpados pelos malfeitos e seu afastamento da administração empresarial, além de identificá-los para as autoridades públicas.
Com as várias notícias de casos de corrupção durante a pandemia, os acordos de leniência também apoiariam e tornariam mais eficazes as investigações e punições, permitindo que empresas sobrevivessem aos corretivos legais derivados de práticas corruptas. Isto possivelmente será necessário e positivo não apenas para grandes empresas, mas para negócios de menor porte que tenham sido contaminados por atos criminosos de administradores, facilitando a sua punição, a reparação dos danos e a manutenção de empregos, com a continuidade serviços contratados pelo setor público ou privado. Permitiria, igualmente, o investimento estrangeiro na aquisição das empresas em face da manutenção dos negócios, com a segurança jurídica derivada de amplos e eficazes acordos de leniência em matéria de corrupção e ilícitos relacionados.