A primeira advogada brasileira, Myrthes Gomes de Campos, concluiu o bacharelado em Direito em 1898, na Faculdade Livre de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro. Entretanto, por conta do machismo que permeava a sociedade da época, apenas em 1906 conseguiu legitimar-se como advogada, ao ingressar no quadro de sócios efetivos do Instituto dos Advogados do Brasil, condição necessária para o exercício profissional da advocacia à época¹.
A primeira advogada no Estado de São Paulo era contemporânea de Myrthes. Em 1897, há mais de um século, Maria Augusta Saraiva ingressava na Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP); entretanto, não suportou os óbices do machismo e, embora tenha exercido a advocacia, abandonou sua carreira.
O movimento realizado por Maria Augusta, apesar de ter ocorrido há mais de 100 anos, nos parece bastante atual.
Embora o quadro da advocacia brasileira seja ainda formado por maioria feminina — 643.696 advogadas contra 628.771 advogados —, esta paridade de gênero dentro dos quadros de inscritos da OAB não é replicada para cargos de liderança na advocacia privada brasileira. Apenas 29% dos postos de comando nos escritórios são ocupados por mulheres².
As justificativas para o afunilamento do número de mulheres em cargos de liderança são variadas, porém a escolha pela maternidade é frequentemente citada. Entretanto, deveria a mulher ter que escolher entre carreira e filhos? Essas escolhas são realmente excludentes? Na minha experiência particular, a maternidade me fez uma líder melhor.
Mulher negra e de família de baixa renda, fui criada por minha mãe, que migrou para São Paulo da zona rural da Bahia, quando tinha apenas 13 anos, e enfrentou todas as dificuldades naturais de quem sai da roça, no Nordeste, para tentar a vida em São Paulo.
Desde muito cedo, reconheci na minha mãe um modelo a ser seguido. Embora não tenha ensino superior, minha mãe reconhecia os estudos como um instrumento de transformação social e, mesmo tendo estudado apenas em escolas públicas, fui aprovada para cursar o ensino médio na Escola Técnica Federal (CEFET/IFSP-SP), oportunidade na qual descobri um mundo novo e cheio de possibilidades. Foi na Federal que eu descobri a existência das universidades públicas e da tão sonhada USP, que parecia um caminho natural para meus colegas, apesar de desconhecido e tão distante para mim.
Com a fé inabalável de minha mãe e muito esforço da minha parte, fui aprovada na Fuvest e comecei a cursar Direito na tradicional Faculdade do Largo São Francisco, em 2012, quando ainda não existiam as cotas raciais na USP e eu era umas das únicas 3 pessoas negras de 450 alunos que ingressaram na instituição naquele ano.
No último ano da faculdade, a maior mudança da minha vida aconteceu: entre a entrega e a apresentação de TCC, a efetivação em um renomado escritório e as provas da OAB, me vi em uma gravidez não planejada e acreditando que minha carreira e meu futuro estavam acabados.
Na verdade, os dois estavam começando: a Isabella nasceu no mesmo dia em que saiu minha inscrição na OAB, 13 de janeiro de 2017, nascia uma mãe e nascia uma advogada. Poucos meses após o nascimento da minha filha, entendi que meu percurso deveria ser uma maternidade solo.
A maternidade nos transforma e, já que eu estava em ritmo de mudança, decidi mudar minha área de atuação. Foi assim que, em 2018, com um pouco mais de um ano de formada e uma filha de um ano e meio, cheguei ao Demarest.
A maternidade solo foi ponto de virada na minha vida e na minha carreira. Construir uma carreira de impacto passou a ser tão importante quanto ganhar dinheiro com meu trabalho. Ser chefe de família me trouxe a responsabilidade financeira, mas ser a principal referência para minha filha me trouxe a responsabilidade do legado. O que poderia ser motivo para me tornar uma pessoa dura foi o motivo que me tornou uma líder empática. O sentimento materno fez com que, mesmo muito júnior, eu exercesse certa liderança sobre meus colegas e desenvolvesse um dever de proteção muito grande por aqueles que trabalhavam comigo.
Entretanto, "nem tudo são flores"! Equilibrar a maternidade solo e a advocacia é tarefa árdua. A culpa por trabalhar demais e não ter tanto tempo para estar com nossos filhos e, ao mesmo tempo, reconhecer que o trabalho é necessário para a construção de um futuro de possibilidades. Passar a noite acordada no hospital com a criança doente e, no dia seguinte, estar preparada para a defesa de um caso no Tribunal. A pandemia escancarou os desafios: ter que cuidar dos processos, da casa e do homeschooling, tudo sozinha e ao mesmo tempo.
Reconheço que "tive a sorte" de encontrar no Demarest um ambiente que permitiu meu desenvolvimento. Eu poderia — infelizmente — sequer ser contratada, mas cheguei ao escritório completa: Karina Miranda, mãe solo da Isabella, mulher, negra e advogada. No Demarest, eu pude redescobrir a minha identidade como uma mulher negra e todo o poder e as dores que essa descoberta carrega. Não digo a mulher negra corpo físico, mas digo a mulher negra corpo político.
Recentemente, fui contemplada com uma bolsa de estudos para realização de um mestrado no exterior, depois de uma rigorosa avaliação. Precisei apresentar minha candidatura e explicar o que eu estava trazendo para a mesa, e ter sido contemplada mostra não apenas o apoio do escritório na construção da minha carreira, mas o avanço da discussão envolvendo a diversidade de gênero e a diversidade racial.
Quando o escritório decide me apoiar, o que ele está dizendo é "eu acredito no projeto de carreira que estamos construindo juntos", e meu projeto de carreira inclui mulher negra e mãe solo na sociedade de um grande escritório. Esse é o plano, e o futuro a Deus pertence.
Se antes a mulher não podia ser advogada, se a maternidade ainda é um empecilho para a mulher alcançar espaços de liderança e se ainda hoje a mulher negra é minoria nos grandes escritórios de advocacia, a oportunidade de ir realizar um mestrado em direito (LL.M) em uma Ivy League nos EUA é uma realização que não é só minha. Minha história e minhas lutas se comunicam com muitas mulheres e espero ser a última geração das primeiras.
Para isso, é preciso olhar para dentro dos escritórios e dos departamentos jurídicos de uma forma realista, identificando quais são os gaps e quais são as medidas que podem ser adotadas hoje para promover a mudança. Minha história com o Demarest foi uma sucessão de quebra de paradigmas: é a história de uma mulher de 22 anos, com um bebê de pouco mais de um ano, que chega a um escritório com pouca experiência na nova área, mas que recebe não só oportunidades de se desenvolver como apoio de mentoria e financeiro (bolsa para o curso de inglês e para o mestrado no exterior), para ir mais longe e voltar à firma para continuar construindo uma história de mudança.