Mudanças na jurisprudência do CARF após o fim do voto de qualidade | Análise
Análise

Mudanças na jurisprudência do CARF após o fim do voto de qualidade

Por Ricardo Maitto e Débora Dolfini Agliardi, tributaristas do TozziniFreire Advogados

22 de September de 2022 13h25

Toda empresa que sofre uma autuação fiscal relativa a tributos federais tem a prerrogativa de discutir o mérito da questão por meio de processo administrativo, inaugurando um litígio entre o contribuinte e a Administração Tributária. Esse litígio é julgado pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), tribunal com composição paritária formado por juízes (conselheiros) indicados pelo Fisco e pelos contribuintes.

Até abril de 2020, os julgamentos do CARF que resultassem em empate eram decididos por voto de qualidade, sendo essa prerrogativa atribuída ao presidente da Turma de Julgamento (representante do Fisco). Essa mecânica de "voto duplo" vinha causando desconforto entre os contribuintes, já que viola o princípio do in dubio pro reo, isto é, a ideia de que, na existência de dúvida, a norma deve ser interpretada em favor do acusado (contribuinte). A aplicação desse princípio, na esfera tributária, está prevista no art. 112 do Código Tributário Nacional.

Tal critério, contudo, foi alterado com a Lei nº 13.988/2020, por meio da qual foi inserido o art. 19-E na Lei nº 10.522/2002, determinando que, no caso de empate em julgamento envolvendo a exigência do crédito tributário, resolve-se a questão favoravelmente ao contribuinte. A norma em questão não extinguiu o voto de qualidade, que continua sendo aplicado em temas de natureza processual, discussões sobre compensação tributária, entre outros.

Atualmente existem três Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) questionando a nova regra. As ADIs sustentam haver inconstitucionalidade formal do novo dispositivo, já que ele teria sido introduzido por uma Medida Provisória sem pertinência temática com a regulação do CARF. Ademais, pleiteiam a inconstitucionalidade material, por conta do suposto desequilíbrio entre as partes no processo e a perda de arrecadação. Embora exista maioria entre os ministros do STF para não admitir os pedidos formulados nas ADIs, não há certeza sobre o desfecho, já que o min. Nunes Marques pediu vista dos processos e pode haver reversão de votos.

O que o presente artigo pretende destacar é que o novo critério de desempate tem revertido diversos posicionamentos do CARF, que até então eram desfavoráveis aos contribuintes. Por óbvio, não se pode atribuir um caráter "definitivo" aos novos posicionamentos, já que a jurisprudência do CARF oscila em razão das mudanças de composição das Turmas de Julgamentos. No entanto, a observância ao princípio in dubio pro reo deve ser celebrada, porque favorece a melhoria do ambiente de negócios no país.

Um dos temas em que se verifica uma reversão de jurisprudência diz respeito à aplicação da multa qualificada (150%) nos casos relativos ao aproveitamento fiscal de ágio gerado na aquisição de participações societárias. Em fevereiro de 2022, a 1ª Turma da CSRF entendeu pela não aplicação da multa qualificada nos casos de aproveitamento de ágio gerado em operações societárias intragrupo (o chamado ágio interno) ocorridas antes da vigência da Lei nº 12.973/2014, uma vez que à época a "proibição" de tal prática decorria de mera divergência de interpretação da legislação, e não de norma legal expressa (Acórdão nº 9101-005.973).

Outro tema envolvendo penalidades refere-se à aplicação de multa isolada em concomitância com a multa de ofício na hipótese de suposta ausência de recolhimento das antecipações mensais de IRPJ/CSLL. Em setembro de 2020, a 1ª Turma da CSRF afastou a aplicação concomitante das multas em razão do princípio da consunção, isto é, a ideia de que uma multa absorve a outra, impedindo a dupla penalização do contribuinte (Acórdão nº 9101-005.080). No entanto, vale observar que houve decisão desfavorável em 2022 da mesma Turma (Acórdão nº 9101-006.056), em razão de mudança na composição dos julgadores.

No que se refere à temática de ágio, em fevereiro de 2022, a 1ª Turma da CSRF se manifestou favoravelmente ao contribuinte quanto à contemporaneidade do laudo de avaliação do investimento. A Turma entendeu que, antes da Lei nº 12.973/2014, não existia dispositivo legal expresso quanto ao prazo de preparação do laudo de avaliação para fundamentar o registro (e posterior aproveitamento fiscal) do ágio, bastando, assim, a contemporaneidade do laudo à operação societária (Acórdão nº 9101-005.974).

Outra temática relevante ligada ao aproveitamento de ágio refere-se à tese da invalidade do ágio em razão do uso de "empresa veículo". Tal tese normalmente é suscitada em situações em que um investidor constitui uma sociedade com o objetivo de adquirir participação societária com ágio e, na sequência, tal empresa é incorporada pela empresa adquirida, passando esta última a ser detida diretamente pelo investidor. Sobre o tema, a 1ª Turma da CSRF entendeu que a interposição de "empresa veículo" para viabilizar a operação, por si só, não representa elemento suficiente para a desconsideração do negócio (Acórdão nº 9101-006.049).

Outro tema que sofreu reversão de jurisprudência é a discussão em torno do aproveitamento de prejuízos fiscais na hipótese de extinção da empresa. Em setembro de 2021, a 1ª Turma da CSRF entendeu que, nas hipóteses de extinção da pessoa jurídica, não se aplica a "trava dos 30%" quanto ao abatimento de lucros tributáveis com prejuízos de anos anteriores, uma vez que essa "trava" pressupõe a continuidade da empresa, o que não ocorre no caso de extinção (Acórdão nº 9101-005.728). O entendimento acima foi reafirmado na sessão realizada no mês de julho (Processo nº 19515.005446/2009-03).

Também sobre o aproveitamento de prejuízos fiscais, a 3ª Turma da CSRF entendeu, em sessão realizada em fevereiro de 2022, que o prazo decadencial de 5 anos para glosa dos prejuízos fiscais compensados deve ser contado a partir da apuração do prejuízo, e não na data em que realizada a sua compensação. Na prática, fica reduzido o período para a Fiscalização questionar o saldo de prejuízos fiscais acumulados das empresas, trazendo mais segurança jurídica aos contribuintes quanto à apuração do IRPJ/CSLL (Acórdão nº 9303-012.808).

Houve também reversão de entendimento do CARF quanto à possibilidade de pagamento de Juros sobre Capital Próprio (JCP) com base em resultados de períodos anteriores. A 1ª Turma da CSRF entendeu como válida a dedução do chamado "JCP extemporâneo". O fundamento do julgado foi de que a Lei nº 9.249/1995, que regula a matéria, não prevê nenhum limitador temporal para dedução desses valores, sendo inaplicáveis eventuais regulamentações infralegais em sentido contrário (Acórdão nº 9101-005.757).

Outro tema que tem surpreendido os contribuintes positivamente, pela reversão de entendimento do CARF, refere-se à aplicação de acordos de bitributação para afastar a tributação automática de lucros auferidos no exterior. De acordo com a legislação brasileira, o lucro de empresas controladas ou coligadas estrangeiras deve ser reconhecido e tributado no País, independentemente da sua distribuição para a controladora brasileira. No entanto, a 1ª Turma da CSRF entendeu que os acordos de bitributação bloqueiam a tributação automática desses lucros, limitando a aplicação das regras brasileiras para situações em que não há acordo entre os países envolvidos ou em que a empresa esteja localizada em paraíso fiscal (Acórdãos nºs 9101-005.808 e 9101.005.809). O Brasil possui acordos de bitributação com mais de 35 países, e sua importância é ressaltada por esse novo posicionamento do CARF.

Houve reversão de jurisprudência também em relação ao regime tributário da incorporação de ações. Havia uma controvérsia recorrente no CARF sobre esse tipo de operação: o Fisco sustenta que, se da incorporação de ações resultar uma diferença positiva entre o valor das ações incorporadas e o valor das ações emitidas pela empresa incorporadora, deve ser recolhido o Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF) no momento da incorporação. No entanto, a 2ª Turma da CSRF deu provimento ao recurso do contribuinte, pela aplicação do critério de desempate, por entender que o ganho de capital decorrente de incorporação de ações por pessoas físicas deve ser apurado somente quando houver a disponibilidade financeira do rendimento, por conta da aplicação do regime de caixa para as pessoas físicas (Acórdão nº 9202-009.948).

O CARF proferiu diversas decisões positivas em matéria previdenciária, revertendo posições anteriores contrárias aos contribuintes. A título de exemplo, recentemente a 2ª Turma da CSRF afastou a incidência de contribuição previdenciária sobre bônus de contratação (hiring bonus), por entender que a verba não possui natureza salarial (Acórdão nº 9202-009.762).

Ademais, a mesma Turma afastou a incidência de contribuições previdenciárias sobre os valores fornecidos mediante "ticket-refeição", por entender que tal instrumento equivale ao fornecimento de alimentação in natura, estando coberto pela regra de isenção das contribuições (Acórdão nº 9202-009.981), e sobre valores pagos a estagiários, por entender que não há vínculo empregatício nas relações empresa-estagiário, desde que cumpridos os requisitos legais da lei de estágio (Acórdão nº 9202-009.895).

Outro tema relevante que ganhou posicionamento favorável por conta do novo critério de desempate foi o da tributação dos planos de stock options. Em novembro de 2021, a 1ª Turma da 4ª Câmara da 2ª Seção do CARF anulou a autuação, entendendo pela não incidência de IRPF sobre o plano de opções de ações oferecidos a diretores e executivos de empresas, por não configurar remuneração, mas contrato de natureza mercantil (Acórdão nº 2402-010.654).

Esses foram alguns temas relevantes que em geral eram decididos de maneira desfavorável ao contribuinte e que agora são impactados pela aplicação do novo critério. Além disso, com o retorno dos julgamentos presenciais, após longo período de suspensão por conta da pandemia, a expectativa é de que mais casos relevantes, que não foram julgados em sessão virtual por conta do alto valor envolvido, sejam julgados nos próximos meses e, consequentemente, possam ser afetados pela nova regra.

Ricardo é sócio do TozziniFreire desde 2020. Atua há 18 anos em consultoria tributária e societária, e também é especialista contábil. Bacharel em Direito e mestre em Direito Econômico e Financeiro, ambos pela Universidade de São Paulo (USP). Coordena o curso de introdução ao Direito Tributário do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT).

Débora é advogada do TozziniFreire desde 2022. Bacharela em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), pós-graduada em Direito Tributário pela Fundação Getulio Vargas (FGV-SP), e atualmente graduanda em Ciências Contábeis pela Fundação Instituto de Pesquisas Contábeis, Atuariais e Financeiras (FIPECAFI).

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