Liberdade de expressão nos EUA e no Brasil: distinções e semelhanças | Análise
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Liberdade de expressão nos EUA e no Brasil: distinções e semelhanças

Por Rodrigo Meyer Bornholdt, sócio do Bornholdt Advogados e doutor em direito das relações sociais

18 de May de 2023 18h35

Após um longo período adotando uma compreensão restrita quanto ao alcance da liberdade de expressão, há cerca de dez anos a jurisprudência do STF ampliou o alcance dessa liberdade fundamental. E deu especial atenção ao modelo vigente nos Estados Unidos, em especial nas disputas relativas a assuntos públicos. Chegou-se mesmo, como no caso da revogação total da lei de imprensa, a suplantar um adequado equilíbrio entre liberdade de expressão e direitos de personalidade. Todavia, essa compreensão quase irrestrita da liberdade de expressão começou a mudar após o protagonismo da extrema-direita no cenário político brasileiro. As ameaças dali advindas alcançaram o próprio Judiciário brasileiro. Paulatinamente, o STF passa a se filiar a um modelo mais consentâneo com o modelo europeu e com a tradição romano-germânica imperante em nosso país.

Aponto nesse breve espaço os mais significativos pontos de distanciamento entre o modelo brasileiro e o estadunidense.

O primeiro e mais importante refere-se ao âmbito de proteção da liberdade de expressão. Em outras palavras, ao alcance, em tese, dessa liberdade fundamental. Nos EUA, ao contrário do Brasil, ele é muito mais alargado, ameaçando perigosamente as estruturas de um Estado Democrático de Direito. Ao contrário da Alemanha, cujo Estado foi praticamente refundado a partir do trauma gerado pelo nazismo, nos Estados Unidos os discursos de ódio continuam tendo proteção constitucional. Aqui bebemos da fonte europeia, que se espraiou também por Portugal e pela Espanha. No Brasil, apologia ao nazismo, ao fascismo, discursos de ódio em geral, o racismo e suas variantes, foram terminantemente proibidos já no texto constitucional, e consolidaram-se com o evolver jurisprudencial. Nos EUA inexiste também uma proteção clara à figura da injúria, em que não se está a tratar de fatos, mas sim de qualificativos, de adjetivações que diminuem a dignidade ou o valor de uma pessoa.

O segundo aspecto refere-se ao momento em que o Judiciário está apto a agir. No Brasil, assim como na Europa, ao tomar conhecimento de uma manifestação agressiva a direitos de personalidade antes de sua publicação, pode o Judiciário intervir para impedi-la. Nos EUA, isso não ocorre: é apenas a posteriori que esse direito pode ser exercido. Houve, no Brasil, manifestações esporádicas nesse sentido, inclusive no STF, porém o predomínio da possibilidade de atuação prévia é ali majoritário e consonante com nossa Constituição e com nosso sistema processual.

O terceiro consiste na exigência da actual malice para configurar o dolo nas agressões contra a honra de pessoas públicas, inclusive para efeitos meramente civis, como o pagamento de danos morais. Para a compreensão da actual malice, é fundamental ter-se em conta que, no Brasil e na Europa, informações sabidamente inverídicas caem fora do âmbito de proteção da liberdade de expressão. Portanto, para fins civis, não importa se o agente tinha ou não conhecimento sobre a veracidade daquilo que expressou. Em caso de prevalência do direito de personalidade em colisão, a indenização ou a providência cautelar será possível. Já nos EUA, para que haja a efetiva condenação, é necessário provar que o agente estava deliberada e conscientemente divulgando uma informação falsa. Um caso recente e notório em que não se exigiu a actual malice (embora ela pudesse ser facilmente confirmada) envolveu um apresentador de televisão de extrema-direita. Alex Jones, agindo de má-fé, negou reiteradamente a existência de um ataque na escola Sandy Hook, em Newtown, Connecticut, em que várias crianças foram assassinadas. O apresentador dizia que o massacre era uma armação para restringir a venda de armas no país.

Um quarto ponto é o que paradoxalmente protege em maior escala os direitos de personalidade em colisão com a liberdade de expressão nos Estados Unidos. As condenações pelo equivalente a danos morais se dão lá em valores muito superiores aos praticados aqui no Brasil. No caso acima citado, Alex Jones foi condenado a pagar mais de US$ 1 bilhão pela dor e pela situação de perigo infligida aos parentes das vítimas e às autoridades da escola.

Já um ponto de aproximação consiste na aceitação do chilling effect enquanto hipótese a ser avaliada quando da restrição à liberdade de expressão. A hipótese cruzou fronteiras e conquistou o próprio direito europeu. A análise a ser feita aqui é de se a restrição da liberdade de expressão não poderia causar um efeito intimidatório à discussão de relevantes interesses públicos. Exige do aplicador do direito, pois, avaliar se as pessoas ainda se sentem livres o suficiente para se pronunciarem de modo contundente sobre assuntos essenciais ao evolver da vida pública. Tal efeito refletiu-se, por exemplo, na análise do caso "Soldaten-Mörder"[1] ("soldados são assassinos") na Alemanha, em que o Tribunal Constitucional Federal, não sem despertar forte polêmica, liberou essa expressão pesada, entendendo dever prevalecer uma tomada de posição antimilitarista, que se sobrepunha à agressão à instituição militar. Perceba-se que, em decisões como essa, reconhece-se haver a agressão consistente na injúria, mas conclui-se pela prevalência da liberdade de expressão.

[1] BVerfGE 93, 266.

Rodrigo Meyer Bornholdt é advogado, doutor em direito das relações sociais pela UFPR e autor dos livros "Métodos para a resolução do conflito entre direito fundamentais". São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005; e "Liberdade de expressão e direito à honra: uma nova abordagem no direito brasileiro". Joinville: Bildung, 2010.

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