Após um longo período adotando uma compreensão restrita quanto ao alcance da liberdade de expressão, há cerca de dez anos a jurisprudência do STF ampliou o alcance dessa liberdade fundamental. E deu especial atenção ao modelo vigente nos Estados Unidos, em especial nas disputas relativas a assuntos públicos. Chegou-se mesmo, como no caso da revogação total da lei de imprensa, a suplantar um adequado equilíbrio entre liberdade de expressão e direitos de personalidade. Todavia, essa compreensão quase irrestrita da liberdade de expressão começou a mudar após o protagonismo da extrema-direita no cenário político brasileiro. As ameaças dali advindas alcançaram o próprio Judiciário brasileiro. Paulatinamente, o STF passa a se filiar a um modelo mais consentâneo com o modelo europeu e com a tradição romano-germânica imperante em nosso país.
Aponto nesse breve espaço os mais significativos pontos de distanciamento entre o modelo brasileiro e o estadunidense.
O primeiro e mais importante refere-se ao âmbito de proteção da liberdade de expressão. Em outras palavras, ao alcance, em tese, dessa liberdade fundamental. Nos EUA, ao contrário do Brasil, ele é muito mais alargado, ameaçando perigosamente as estruturas de um Estado Democrático de Direito. Ao contrário da Alemanha, cujo Estado foi praticamente refundado a partir do trauma gerado pelo nazismo, nos Estados Unidos os discursos de ódio continuam tendo proteção constitucional. Aqui bebemos da fonte europeia, que se espraiou também por Portugal e pela Espanha. No Brasil, apologia ao nazismo, ao fascismo, discursos de ódio em geral, o racismo e suas variantes, foram terminantemente proibidos já no texto constitucional, e consolidaram-se com o evolver jurisprudencial. Nos EUA inexiste também uma proteção clara à figura da injúria, em que não se está a tratar de fatos, mas sim de qualificativos, de adjetivações que diminuem a dignidade ou o valor de uma pessoa.
O segundo aspecto refere-se ao momento em que o Judiciário está apto a agir. No Brasil, assim como na Europa, ao tomar conhecimento de uma manifestação agressiva a direitos de personalidade antes de sua publicação, pode o Judiciário intervir para impedi-la. Nos EUA, isso não ocorre: é apenas a posteriori que esse direito pode ser exercido. Houve, no Brasil, manifestações esporádicas nesse sentido, inclusive no STF, porém o predomínio da possibilidade de atuação prévia é ali majoritário e consonante com nossa Constituição e com nosso sistema processual.
O terceiro consiste na exigência da actual malice para configurar o dolo nas agressões contra a honra de pessoas públicas, inclusive para efeitos meramente civis, como o pagamento de danos morais. Para a compreensão da actual malice, é fundamental ter-se em conta que, no Brasil e na Europa, informações sabidamente inverídicas caem fora do âmbito de proteção da liberdade de expressão. Portanto, para fins civis, não importa se o agente tinha ou não conhecimento sobre a veracidade daquilo que expressou. Em caso de prevalência do direito de personalidade em colisão, a indenização ou a providência cautelar será possível. Já nos EUA, para que haja a efetiva condenação, é necessário provar que o agente estava deliberada e conscientemente divulgando uma informação falsa. Um caso recente e notório em que não se exigiu a actual malice (embora ela pudesse ser facilmente confirmada) envolveu um apresentador de televisão de extrema-direita. Alex Jones, agindo de má-fé, negou reiteradamente a existência de um ataque na escola Sandy Hook, em Newtown, Connecticut, em que várias crianças foram assassinadas. O apresentador dizia que o massacre era uma armação para restringir a venda de armas no país.
Um quarto ponto é o que paradoxalmente protege em maior escala os direitos de personalidade em colisão com a liberdade de expressão nos Estados Unidos. As condenações pelo equivalente a danos morais se dão lá em valores muito superiores aos praticados aqui no Brasil. No caso acima citado, Alex Jones foi condenado a pagar mais de US$ 1 bilhão pela dor e pela situação de perigo infligida aos parentes das vítimas e às autoridades da escola.
Já um ponto de aproximação consiste na aceitação do chilling effect enquanto hipótese a ser avaliada quando da restrição à liberdade de expressão. A hipótese cruzou fronteiras e conquistou o próprio direito europeu. A análise a ser feita aqui é de se a restrição da liberdade de expressão não poderia causar um efeito intimidatório à discussão de relevantes interesses públicos. Exige do aplicador do direito, pois, avaliar se as pessoas ainda se sentem livres o suficiente para se pronunciarem de modo contundente sobre assuntos essenciais ao evolver da vida pública. Tal efeito refletiu-se, por exemplo, na análise do caso "Soldaten-Mörder"[1] ("soldados são assassinos") na Alemanha, em que o Tribunal Constitucional Federal, não sem despertar forte polêmica, liberou essa expressão pesada, entendendo dever prevalecer uma tomada de posição antimilitarista, que se sobrepunha à agressão à instituição militar. Perceba-se que, em decisões como essa, reconhece-se haver a agressão consistente na injúria, mas conclui-se pela prevalência da liberdade de expressão.
[1] BVerfGE 93, 266.
Rodrigo Meyer Bornholdt é advogado, doutor em direito das relações sociais pela UFPR e autor dos livros "Métodos para a resolução do conflito entre direito fundamentais". São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005; e "Liberdade de expressão e direito à honra: uma nova abordagem no direito brasileiro". Joinville: Bildung, 2010.
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