Lei do Superendividamento: o que, de fato, é reconhecido como dívida? | Análise
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Lei do Superendividamento: o que, de fato, é reconhecido como dívida?

Por Amanda Brighenti e Giovanna Camargo, advogadas do Lima Junior, Domene e Advogados Associados

15 de September de 2022 15h25

A Lei nº 14.181/2021, conhecida como Lei do Superendividamento, sancionada em julho de 2021, carrega mecanismos de prevenção e tratamento do consumidor inadimplente, a fim de permitir o cumprimento das obrigações contraídas com seus fornecedores sem o comprometimento da renda necessária para a sobrevivência, denominada mínimo existencial.

Além de reforçar as medidas de informação e prevenção do superendividamento, a recente legislação cria um procedimento para a tentativa de conciliação e repactuação de dívidas do consumidor superendividado, que deverá proteger as garantias e as formas originalmente pactuadas.

Assim, nos termos da legislação, são reconhecidos como dívidas quaisquer compromissos financeiros decorrentes da relação de consumo, inclusive operações de crédito, compras a prazo e serviços de prestação continuada. No entanto, não estão englobadas as dívidas assumidas em função de aquisições de serviços de luxo de alto valor, provenientes de contratos celebrados dolosamente sem o propósito de realizar pagamento, bem como contratos de crédito com garantia real, de financiamentos imobiliários e de crédito rural.

Contudo, como a supracitada Lei não regulamenta objetivamente a definição de mínimo existencial, o conceito foi implementado pelo Decreto nº 11.150/2022, que determina ser esse montante o equivalente a 25% do salário mínimo vigente na data de publicação do mencionado Decreto. Ainda, como agravante, a atualização do valor é de competência do Conselho Monetário Nacional, ou seja, o reajuste anual do salário mínimo não implicará na atualização tácita do importe instituído pelo Decreto.

Na teoria, a adequação do parcelamento das dívidas em respeito ao valor identificado como mínimo existencial culminaria em maiores chances de adimplência do consumidor (devedor) com as obrigações contraídas face aos fornecedores (credores), corroborando com a eficiência do plano de pagamento estabelecido.

O Decreto regulamenta a preservação e o não comprometimento do mínimo existencial para fins de prevenção, tratamento e conciliação de situações de superendividamento em dívidas de consumo, supostamente nos termos do disposto no Código de Defesa do Consumidor. Entretanto, sob esse prisma, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) propõe que o mínimo existencial deveria ser um índice de comprometimento de renda a ser aplicado casuisticamente, e não um critério fixo.

Em outras palavras, o valor estabelecido para ser respeitado como mínimo existencial é considerado irrisório face aos gastos contemporâneos com despesas básicas, o que não apenas acarretaria impactos negativos para a cadeia financeira do tomador de crédito, como também agravaria as condições de sobrevivência dos brasileiros, motivo pelo qual a normativa foi alvo de diversas críticas nesse sentido pelos órgãos de defesa do consumidor.

Nesse diapasão, a definição de mínimo existencial instituída de forma rasa e objetiva sequer permite a materialização de direitos sociais constitucionalmente garantidos, o que resulta na atual discussão doutrinária chamada de paradigma da essencialidade.

Sob o prisma prático, se mantido nesses termos, o Decreto permite que o cidadão brasileiro tenha quase a totalidade de sua renda destinada à repactuação de dívidas contraídas, desde que garantido o valor aproximado de R$ 303,05 para todas as suas despesas de sobrevivência, que equivale à 25% do salário mínimo.

Portanto, a constitucionalidade do Decreto 11.150/22 divide e efervesce discussões entre os profissionais do Direito, tendo em vista não apenas o Princípio da Proibição do Retrocesso, como também a expectativa de risco inerente à aplicabilidade do procedimento retirar o efeito útil da proteção constitucional ao consumidor, o que extrapola o poder regulamentador transferido pela Lei n° 14.181/21.

Amanda atua na área de Relações de Consumo do escritório. Bacharel em Direito pela Instituição Toledo de Ensino em Bauru, com pós-graduação em Processo Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

Giovanna é estagiária da área de Relações de Consumo do escritório. Está no último semestre de Direito na Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas). Com experiência em escritórios de advocacia nas áreas de direito privado, contratos e acordos, dentre outros.

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