O processo de regularização de empreendimentos imobiliários no Brasil tem enfrentado uma série de obstáculos que transcendem as exigências técnicas propriamente ditas. Um dos mais recorrentes é a negativa da expedição do "Habite-se" pelo ente municipal mesmo após a conclusão da obra e o cumprimento, pelo empreendedor, do projeto aprovado. A situação se agrava quando a justificativa da negativa está pautada em suposto descumprimento de norma urbanística que não foi considerada impeditiva ao longo da execução da obra, tampouco no momento da aprovação ou renovação do alvará.
Recentemente, uma das maiores incorporadoras do país enfrentou exatamente essa situação. Após desenvolver o empreendimento conforme o projeto aprovado, teve seu alvará renovado durante a execução da obra. Somente quando da solicitação do 'Habite-se' foi surpreendida com a negativa administrativa, com base em descumprimento de parâmetro urbanístico que jamais fora apontado como impeditivo nas fases anteriores do processo. Trata-se, portanto, de flagrante violação aos princípios da legalidade, segurança jurídica, proteção da confiança e boa-fé objetiva.
A jurisprudência nacional tem se manifestado de forma reiterada sobre a impossibilidade de se negar o 'Habite-se' quando o projeto fora previamente aprovado e a obra concluída sem embargos. Nesse sentido, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina decidiu que 'tendo a municipalidade concedido alvará de construção e permitido que a situação se consolidasse com a finalização da obra, sem tê-la embargado no curso da edificação, torna-se injusta a negativa do 'habite-se'' (TJSC, RNMS 03062983620158240075)
O mesmo raciocínio é adotado pelo Tribunal de Justiça de Alagoas, ao afirmar que mesmo havendo divergência entre os parâmetros urbanísticos e a obra executada, o direito à obtenção do 'Habite-se' se impõe quando o empreendedor atuou com base na confiança legítima de que seu projeto era regular, nos termos do alvará concedido (TJAL, REEX 0718301-95.2015.8.02.0001).
Não se pode admitir que o Estado, por seus próprios atos contraditórios, gere insegurança e prejuízo ao empreendedor que agiu com diligência, transparência e obediência ao projeto autorizado. A jurisprudência é firme em reconhecer que a presunção de legalidade do ato administrativo deve ser ponderada com os princípios da razoabilidade e da confiança legítima.
Além da jurisprudência, a Lei prevê expressamente que qualquer decisão que venha a decretar invalidação de ato, ajuste ou norma administrativa não pode impor aos sujeitos atingidos ônus ou perdas que, em função das peculiaridades do caso, sejam anormais ou excessivos. (art. 21, LINDB)
Mais do que um documento técnico, o 'Habite-se' é símbolo de regularidade urbanística e segurança jurídica, consistindo em ato administrativo necessário à finalização de toda e qualquer operação de incorporação. Sua negativa arbitrária e tardia configura abuso de poder e enseja intervenção do Poder Judiciário, seja por via mandamental, seja por ação de obrigação de fazer, para compelir o ente público à emissão do certificado, como forma de preservar o direito adquirido, o patrimônio investido e a boa-fé de terceiros adquirentes.
A proteção do interesse público não pode ser argumento para a invalidação de situações consolidadas que decorreram da própria atuação da Administração. Quando o próprio Poder Público induz o administrado à confiança legítima, o mínimo que se espera é coerência, razoabilidade e respeito aos seus próprios atos.
Matheus Cavalcanti é sócio do escritório Melo e Isaac Advogados, com atuação especializada em direito civil e imobiliário. Graduou-se em direito pela Faculdade Baiana de Direito, possui extensão em direito imobiliário pela mesma faculdade. Atualmente está fazendo um LLM em direito civil e processual civil pela FGV.
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