Entre a Tradição e a Inovação: As Atividades Extrajudiciais e os Avanços Tecnológicos | Análise
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Entre a Tradição e a Inovação: As Atividades Extrajudiciais e os Avanços Tecnológicos

Por Rachel Letícia Curcio Ximenes, sócia do CM Advogados

29 de July 9h10

As serventias extrajudiciais, fundamentadas no artigo 236 da Constituição Federal e em legislações como a Lei n.º 8.935/94, são pilares essenciais na garantia e progressão de direitos fundamentais. Exercem apoio incondicional ao Poder Judiciário, tornando públicos atos cruciais como registros de nascimento, óbito, casamento, autenticações, inventários e divórcios, conferindo segurança jurídica de forma rápida e eficiente.

A história dessas atividades remonta há séculos, com a figura dos escribas no Egito Antigo e sua evolução no Direito Romano e com a Igreja, onde passaram a ser reconhecidos pela assessoria imparcial e de qualidade moral, que lhes garantia a "fé-pública". No Brasil, a atividade se consolidou a partir do "registro do vigário" no século XIX. Notários e Registradores tornaram-se indispensáveis para a justiça, auxiliando em seu acesso de forma célere e efetiva. Antônio Pessoa Cardoso destaca a importância da via extrajudicial para desonerar o Judiciário, tratando que "naquilo que se chama de jurisdição voluntária, quanto mais puder ser delegada a particulares, isso desentulhará a máquina judiciária".

Esses profissionais, que gerenciam serviços públicos sob fiscalização, mas com liberdade decisória dentro da ordem jurídica, possuem um papel primordial na sociedade: assegurar e proporcionar segurança jurídica, construindo ligações entre o cidadão e o Estado. Os notários e registradores destacam-se, pois, como operadores jurídicos preventivos, atuando de maneira decisiva na melhoria das relações jurídicas, por meio de sua capacidade técnica e fé-pública atribuída. Patrícia André Ferraz reforça que os cartórios são reconhecidos pela sociedade como estruturas confiáveis que atribuem regularidade aos negócios e fornecem informações seguras.

A Constituição de 1988, ao exigir concursos públicos para a atividade, abriu as portas para profissionais qualificados, aprimorando a expertise e a capacidade dos notários e registradores de enfrentarem novos desafios.

A Transformação Digital e o Papel da Pandemia

A adaptação à digitalização e aos avanços tecnológicos é uma etapa marcante das serventias. A chamada "revolução 4.0" alcançou os cartórios, e a pandemia de COVID-19 atuou como um acelerador decisivo para o desenvolvimento dos atos eletrônicos. Embora as serventias já viessem se adaptando, o cenário pandêmico exigiu uma implementação estoica de sistemas que aperfeiçoassem os trabalhos e satisfizessem a população com soluções imediatas e desburocratizadas.

A criação da assinatura eletrônica foi um marco, conforme Ademar Stringher previu em 2002. Outro ponto fundamental foi a publicação da Medida Provisória n.º 2200-2 de 2001, que instituiu a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP/BR), garantindo a autenticidade e validade jurídica de documentos eletrônicos. Desde então, dezenas de normas do CNJ corroboraram essa evolução, como o Provimento n.º 46/15 (Central de Informações de Registro Civil - CRC), Provimento 87/2019 (Central Nacional de Serviços Eletrônicos dos Tabeliães de Protesto - CENPROT), Provimento 47/2015 (Registro Eletrônico de Imóveis), Provimento 48/2016 (Registro Eletrônico de Títulos e Documentos) e, o Provimento 100/2020, que regulamenta a prática de atos notariais eletrônicos utilizando o sistema e-Notariado.

Esses avanços não só permitiram a prática de atos de forma eletrônica e remota, facilitando o acesso da população, mas também evidenciaram que as serventias extrajudiciais sempre buscaram acompanhar as inovações tecnológicas para prestar serviços de qualidade, com agilidade e eficiência.

A Relação com a Inteligência Artificial: Usos e Limites

O avanço tecnológico, incluindo a Inteligência Artificial (IA), desafia nossa compreensão sobre seus limites. A IA, definida por John McCarthy como "a ciência e engenharia de produzir sistemas inteligentes," já é empregada nas serventias para auxiliar em atividades de baixa complexidade, como triagem de documentos, identificação de inconsistências e automação de atendimento. Felipe Boaventura, Diretor Jurídico da Emccamp Residencial, destaca como a digitalização e o uso de IA aceleram serviços, eliminando a necessidade de retornos físicos ao cartório para corrigir erros simples.

As serventias vêm adotando inovações importantes, como a assinatura digital, além de sistemas automatizados de análise documental e cruzamento de dados. Esses recursos, utilizados com cautela, garantem a eficiência das operações e a segurança dos dados.

Contudo, é crucial reconhecer os limites da IA. Embora proporcione ganhos de tempo e agilidade, ela jamais será capaz de substituir as funções de um notário ou registrador. As atividades desempenhadas por esses profissionais vão além da mera conferência documental; elas incluem a avaliação da vontade das partes, a interpretação do caso concreto e a atribuição de validade e segurança jurídica por meio da fé pública. Como José Henrique Coelho Dias da Silva ressalta, os profissionais extrajudiciais possuem liberdade decisória, e sua autonomia e expertise são pontos cruciais que os diferenciam.

A Defesa da Insubstituibilidade da Fé Pública

A natureza personalíssima da fé pública torna impossível sua transferência a um sistema tecnológico. O artigo 3º da Lei n.º 8.935/94 é categórico: "notário, ou tabelião, e oficial de registro, ou registrador, são profissionais do direito, dotados de fé pública, a quem é delegado o exercício da atividade notarial e de registro". Walter Ceneviva explica que a fé pública "abona a certeza e a verdade dos assentamentos que notário e oficial de registro pratiquem e das certidões que expeçam nessa condição", conferindo "confiança atribuída por lei ao que o delegado declare ou faça, no exercício da função, com presunção de verdade".

A essência da atividade notarial e registral é resultado da condição jurídica desses profissionais. Embora a Inteligência Artificial seja avançada, ela é ineficaz para realizar interpretações normativas complexas ou analisar as realidades concretas dos casos, não substituindo, portanto, a figura dos delegatários. O Dr. Gabriel de Sousa Pires traduz bem a ideia acima: a IA é uma ferramenta de apoio poderosa para redução de tempo e custo, mas sua aplicação deve ser cautelosa, sempre preservando a autonomia dos notários e registradores. A IA veio para auxiliar no aprimoramento dos serviços, não para substituir os profissionais.

Conclusão

As serventias extrajudiciais demonstram ser um grande exemplo de modernização e adaptação, conciliando tradição e inovação. A integração aos meios digitais é um caminho em constante crescimento, pautado na segurança jurídica. A revolução digital transformou as relações, possibilitando novas maneiras de lidar com os atos extrajudiciais, sem que os cartórios perdessem a tradição inerente às suas funções.

No que diz respeito à Inteligência Artificial, embora promissora e com potencial único, deve ser manuseada com prudência, sempre como ferramenta de auxílio. Ela presta apoio na facilitação do atendimento ao público e na celeridade das transações, impactando positivamente a efetividade e otimização dos processos. No entanto, a substituição dos notários e registradores por inteligências diversas é inconcebível, visto que a fé pública, essencial e personalíssima, é o pilar das atividades extrajudiciais, sendo, por isso, insubstituível e indelegável.

Rachel Letícia Curcio Ximenes

Sócia do CM Advogados, mestra e doutora em Direito Constitucional pela PUC-SP, especialista em Direito Notarial e Registral pela Escola Paulista da Magistratura (EPM) e em Proteção de Dados e Privacidade pelo Insper, pós-graduada em Direito Legislativo pelo IDP; Presidente da Comissão de Direito Notarial e Registros Públicos da OAB-SP.

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