"O que há num nome? O que chamamos rosa, sob qualquer outro nome, teria igual perfume."
- William Shakespeare, Romeu e Julieta
A frase consagrada por Shakespeare nos lembra que, no direito e nos negócios, a nomenclatura importa menos do que a essência. Essa máxima é especialmente relevante na análise da natureza jurídica do earn-out em operações de fusões e aquisições (M&A), em que forma e conteúdo nem sempre caminham juntos.
O earn-out é, por definição, uma parcela variável do preço de aquisição de uma empresa, condicionada ao desempenho futuro do negócio após a venda. Para ilustrar, imagine a venda da empresa Alfa por R$ 10 milhões. Compradores e vendedores, no entanto, divergem quanto ao valor real da companhia: o vendedor aposta no aumento do faturamento com novos contratos e produtos em lançamento, enquanto o comprador adota postura mais cautelosa diante das incertezas. Como solução, as partes estruturam o contrato da seguinte forma: (i) pagamento fixo de R$ 7 milhões no fechamento; e (ii) até R$ 3 milhões adicionais, a serem pagos caso a empresa atinja R$ 5 milhões de lucro líquido acumulado nos dois anos seguintes. Essa parcela variável, vinculada ao sucesso pós-venda, é o earn-out. Segundo a American Bar Association (ABA), aproximadamente 26% das transações privadas de M&A nos Estados Unidos da América, em 2023, incluíram cláusulas de earn-out, representando um aumento de 30% em relação aos anos anteriores.1 Cláusulas de earn-out são frequentemente utilizadas para lidar com divergências de valuation, e esse dado sugere um aumento dessas divergências nos últimos anos. É fundamental, portanto, que as cláusulas de earn-out tenham definições e metas claras, bem como fórmulas objetivas, inclusive com exemplos, de forma a mitigar discussões entre comprador e vendedor no momento de calcular o valor.
Para que as metas associadas ao earn-out sejam alcançadas, é comum que os antigos sócios permaneçam na empresa por um prazo predeterminado, garantindo continuidade operacional e alinhamento financeiro. Por isso, a cláusula de earn-out costuma vir acompanhada de uma cláusula de lock-up, que obriga esses sócios a permanecerem na gestão durante o período acordado. Recomenda-se que todos os sócios capazes de influenciar o cumprimento das metas permaneçam na condução do negócio pelo tempo necessário para assegurar o pleno atingimento do earn-out.
Além disso, a cláusula de earn-out também pode funcionar como um incentivo ao cumprimento das metas acordadas. Ao vincular parcelas adicionais do preço ao desempenho futuro da empresa, essa estrutura estimula especialmente os sócios fundadores - sobretudo quando permanecem à frente da operação - a se engajar ativamente na geração dos resultados esperados
No entanto, a complexidade aumenta quando o pagamento do earn-out não está apenas atrelado ao desempenho da empresa, mas também condicionado à permanência do vendedor na operação ou ao exercício de funções específicas no pós-venda. Nessas situações, surge a controvérsia sobre a natureza jurídica do earn-out: trata-se de uma parcela adicional do preço de aquisição ou de uma remuneração pelos serviços prestados pelo vendedor após a conclusão da transação?
O aspecto mais sensível dessa análise reside em verificar se o pagamento do earn-out está condicionado à continuidade ou ao desempenho profissional do vendedor. Quando vinculado à atuação do vendedor como administrador, executivo ou consultor, há forte indicativo de que o valor configura remuneração por serviços, ainda que formalmente apresentado como parte do preço de aquisição. Por outro lado, quando o pagamento depende exclusivamente de indicadores objetivos da empresa (como EBITDA, receita ou margem líquida), sem relação direta com a atuação do vendedor, tende-se a classificá-lo como parte integrante do preço de aquisição.
A reclassificação do earn-out como remuneração, em vez de parte do preço, traz impactos fiscais relevantes. Para o comprador, os valores pagos a esse título podem ser deduzidos como despesa operacional, reduzindo a base de cálculo do Imposto de Renda (IR) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), porém há a contribuição previdenciária patronal. Para o vendedor pessoa física, porém, os efeitos são geralmente mais gravosos: em vez de tributados como ganho de capital, com alíquotas progressivas e limitadas a 22,5%, os valores passam a ser considerados rendimentos do trabalho ou prestação de serviços, sujeitos a tabela progressiva geral de IR chegando à alíquota de 27,5% e, conforme o caso, contribuições previdenciárias, inclusive patronais.
A legislação brasileira não dispõe de norma específica que regule o earn-out, o que amplia a margem de incerteza jurídica sobre sua natureza e efeitos. Essa lacuna normativa exige contratos redigidos com extrema cautela. A falta de uniformidade nas interpretações contribui para um ambiente de insegurança jurídica, no qual as mesmas cláusulas podem ser vistas ora como componente do preço, ora como pagamento disfarçado por serviços. A ausência de critérios legais objetivos abre espaço para disputas administrativas e judiciais, dificultando a previsibilidade e a segurança das operações de fusões e aquisições.
Diante dos riscos jurídicos, fiscais e operacionais envolvidos, é essencial que as cláusulas de earn-out sejam elaboradas com linguagem precisa, metas objetivas e estrutura transparente. Mais do que um instrumento financeiro, o earn-out representa um ponto delicado de equilíbrio entre os interesses das partes, exigindo abordagem técnica, multidisciplinar e preventiva, idealmente conduzida com o apoio de assessores especializados e experientes, capazes de estruturar a solução mais adequada para cada transação.
Portanto, a citação que abriu este artigo é valiosa para os operadores do direito: a essência de um instituto jurídico não está no nome que recebe, mas na função que desempenha, no papel que exerce e no contexto em que se insere. O earn-out, mesmo quando rotulado como "preço de aquisição", pode revelar-se, na prática, como uma forma de remuneração. Ignorar essa distinção pode acarretar consequências jurídicas e fiscais indesejadas. Por isso, mais do que rótulos, o que se exige na atuação jurídica e negocial é clareza de propósito, coerência estrutural e fidelidade à substância dos fatos.
Amanda Lourenço é associada da área de Societário e M&A do VBSO Advogados. É Bacharel em Direito, Universidade Presbiteriana Mackenzie, também possui Pós-graduação em Marketing e Gestão de Negócios de Luxo Contemporâneo, Escola Superior de Propaganda e Marketing - ESPM.
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