Diversidade e inclusão: os desafios para os transgêneros no mercado de trabalho | Análise
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Diversidade e inclusão: os desafios para os transgêneros no mercado de trabalho

Por Ana Paula Vizintini, sócia do Schmidt, Valois, Miranda, Ferreira & Agel Advogados e membro do coletivo Mães da Resistência

16 de November de 2021 8h

Falar em diversidade e inclusão da comunidade LGBTQIA+ nos dias atuais até parece fácil. Para mim, especialmente, sempre foi. Felizmente, as minhas resistências pontuais — que, sem dúvida, existiram e algumas vezes ainda me assombram — nunca passaram da página dois. As pessoas ao meu redor tendem a creditar isso ao fato de eu ter um filho trans.

Meu caçula, renascido no processo de transição de gênero com o expressivo nome de Sol, tem 25 anos, é sociólogo, recém-formado e recentemente foi contratado como assistente de conteúdo de uma grande empresa de comunicação. Apesar das angústias, ele acabou não só escapando da assustadora lista de jovens fora do mercado de trabalho que identifica o Brasil, mas também de um recorte mais estreito da tal lista: o de pessoas trans que, embora preparados, muitas vezes não são absorvidos pelo mercado.

Transgressor e corajoso desde sempre, ele me fez enxergar que ter um filho homossexual ou trans não é diferente de ter um filho cisgênero, e reforçou em mim a certeza de que pessoas são simplesmente pessoas. Quanto mais diversas forem aquelas com as quais você se relaciona, mais rica será a sua trajetória. Sou, portanto, uma fervorosa defensora dessa luta, profissionalmente, como responsável pelas iniciativas de Diversidade & Inclusão (D&I) do escritório em que sou sócia e, na vida privada, como mãe do Sol. Sou, literalmente, uma Mãe da Resistência.

Estou certa de que precisamos falar mais sobre esse tema e, paulatinamente, estamos conseguindo. Ademais de recorrente nas mídias sociais, no mundo corporativo e no mercado jurídico é quase pauta obrigatória, quer por genuíno comprometimento e responsabilidade social, quer por pressão dos clientes, dos investidores estrangeiros ou simplesmente por razões de competitividade. Fato é que as empresas e o mercado jurídico vêm tentando assimilar o tema e integrá-lo em sua realidade e cultura organizacional.

Pesquisas recentes demonstram que, no mercado de trabalho, em geral, embora se observem avanços — especialmente nas grandes corporações —, a discriminação de indivíduos em função de seu gênero e orientação sexual ainda é uma realidade. Sob este aspecto, destaco o trabalho da Associação Brasileira de Comunicação Empresarial (ABERJE), que em 2019 realizou a pesquisa "A Diversidade e Inclusão nas Organizações no Brasil". O estudo revelou que identidade de gênero foi onde as organizações obtiveram o maior progresso em relação aos programas de diversidade e inclusão (63%), seguido de pessoas com deficiência (48%), orientação sexual (34%) e cor/etnia (29%).

Apontou, ademais, que as maiores barreiras à estratégia para a diversidade e inclusão nas organizações são as questões orçamentárias (35%), a falha em perceber a conexão entre diversidade e os impulsionadores de negócios (34%) e a resistência e falha da gerência intermediária na execução dos programas (30%). Há ainda a sensação de que a força de trabalho já é suficientemente diversa (22%), a falta de comprometimento da alta liderança (16%) e a definição de outras prioridades (16%). Sob a ótica dos profissionais entrevistados, a maioria relata nunca ter sofrido qualquer situação de discriminação na organização em que trabalha atualmente, mas já ter presenciado situações de discriminação, sendo 49% com relação à orientação sexual, 42% com relação ao peso ou altura, 40% com relação à identidade ou expressão de gênero, 35% com relação à idade e 30% com relação à cor ou etnia.

No mercado jurídico, especificamente, esse também tem se revelado um desafio permanente. Isso porque, especialmente no cenário das grandes bancas, a advocacia privada ainda reflete, de uma forma muito dura, as consequências sociais da segregação de grupos historicamente minorizados. A questão racial e a pauta LGBTQIA+, por exemplo, são alguns exemplos que tornam evidentes como esses espaços de privilégio ainda são restritos a um modelo específico de pessoa e, portanto, carregados de exclusão. E este cenário precisa ser revertido urgentemente, por cada um de nós, através de um aprofundado enfrentamento das razões da falta de diversidade e representatividade nos espaços onde atuamos. Se não o fazemos, nos tornamos cúmplices desse ciclo tão ingrato de exclusão. Ou seja, se enxergamos um problema estrutural em que há, por exemplo, pouca abertura para jovens negros (ou LGBTQIA+, negros, numa necessária intersecção de opressões) cursarem direito ou se capacitarem para um escritório de excelência, devemos, sem dúvida, nos responsabilizar pelos processos que acarretaram a vulnerabilidade.

E sobre o tema, a relevantíssima publicação Análise Advocacia Diversidade e Inclusão, material recente da Análise Editorial, nos traz um alento: o cenário de exclusão está sendo enfrentado por um número cada vez mais expressivo de escritórios! Isso é o que evidencia a consistente pesquisa feita pela publicação, com 192 bancas nacionais, com um retrato das medidas de D&I já adotadas na área. Segundo evidenciado na pesquisa, das bancas participantes, a maior parte afirma já dispor de um programa ou um comitê fixo de D&I (42%) ou informa que pretendem criar uma estrutura em breve (38%). Dentre esses, em 94% das bancas há comitês ou programas com foco na igualdade de gênero e as questões relacionadas ao público LGBTQIA+ estão incluídas nos programas de D&I de oito de cada dez bancas. No mesmo sentido, quase 25% relataram possuir de dois a cinco advogados autodeclarados LGBTQIA+ e, por outro lado, apenas três em cada dez dos escritórios participantes apontaram não possuir nenhum profissional da sigla em seu quadro de funcionários.

Os números expostos, sem dúvidas, são fantásticos, e precisam ser celebrados, ainda que, como no mercado em geral, exista muito caminho longo a percorrer, como evidencia outro relevante dado da pesquisa: em 18% das bancas ouvidas, a criação de um programa ou comitê de D&I não faz parte do seu planejamento. Questionadas sobre como implementam ações voltadas para as questões de diversidade e inclusão, essas bancas afirmam basear sua atividade em uma cultura naturalmente inclusiva, pautada pelo que chamam de preocupação orgânica em prol da diversidade.

No Brasil, a realidade enfrentada por essa população ganha contornos ainda mais dramáticos, já que é o país que mais mata pessoas trans no mundo, segundo a  Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), que elabora anualmente  dossiê com esses dados. No mercado de trabalho, a realidade não aparenta ser menos violenta. O relatório da Antra de 2020, através de uma enquete, com 2.535 pessoas, sobre empregabilidade trans, demonstrou que o mercado formal de trabalho ainda enfrenta desafios para a contratação ou efetivação desse grupo. A dificuldade de manutenção desses indivíduos nas empresas contratantes devido à transfobia institucional é um dos resultados flagrantes, especialmente fora das grandes corporações. Se, como evidenciado pela ABERJ, no âmbito das grandes corporações a discriminação é quase inexpressiva, em ambientes menos privilegiados, a realidade é outra.

Sendo assim, as ações de promoção de inclusão das empresas, ainda que bem-vindas, permanecem ineficientes. E o Estado, por seu turno, não tem ajudado a enfrentar as pautas dessa comunidade. Vale registrar, a respeito, a absoluta invisibilidade dessa população para fins estatísticos! Embora a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, divulgada pelo IBGE, evidencie, nos dados relativos ao segundo trimestre/2021, uma taxa de desemprego de 14,1%, e 14,4 milhões de desempregados, não se sabe quanto desses milhões de brasileiros e brasileiras que estão fora do mercado de trabalho são gays, lésbicas, transexuais ou travestis.

Essa parcela expressiva da população simplesmente permanece invisível nessa fonte oficial de dados estatísticos, matéria prima para nortear políticas públicas. Esse cenário, infelizmente, continuará do jeito que está, uma vez que o Censo de 2022 deixará de fora a população LGBTQIA+, reafirmando a situação de invisibilidade.

E como melhorar esse quadro no universo corporativo e das bancas jurídicas? Não tem receita pronta, por obvio, mas o primeiro passo deve ser o compromisso com uma atitude genuína, verdadeira, muito além do mero discurso. E, especialmente, o comprometimento da autogestão com o tema, traduzido em investimentos voltados a informação e educação de todos os colaboradores. Diversidade e inclusão é, também, uma questão de negócio e, assim, deve assumir protagonismo, como tema estratégico das organizações, inclusive no mercado jurídico.  E, ainda, se negligenciado, pode virar custo, como danos à imagem, perda de clientes e receitas, processos judiciais etc. Vale ilustrar o tema com o episódio que envolveu aquela conhecida empresa de massas, que afirmou publicamente que jamais teria seus comerciais protagonizados por um casal gay, já que sua marca estava alinhada com a "família tradicional". O resultado da escorregada homofóbica lhe gerou, por um lado, uma queda vertiginosa no faturamento, mas, por outro, foi a sacudida que precisava para implantar um belíssimo programa de diversidade, chegando a ser reconhecida pela organização norte-americana Human Rights Campain (HRC) como empresa alinhada com a causa LGBT.

Voltando ao meu filho Sol, depois de tudo que vimos por aqui, como mãe e profissional de direito e diversidade, não posso deixar de render minhas homenagens àqueles que corajosamente decidiram pela sua contratação, pelos seus méritos e capacidades, enxergando além da identidade de gênero e, especialmente, oportunizando um olhar mais atento sobre a diversidade à toda a equipe. Tenho certeza de que ele e outros tantos talentosos profissionais LGBTQIA+ que se ativam todos os dias em suas funções estão fazendo a diferença, ainda que com uma mínima e singela colaboração. Torço para que Sol possa brilhar cada dia mais, espalhando generosidade, respeito e empatia, valores sob os quais foi moldado e, certamente repassará ao seu filhote, a quem ansiosamente esperamos a chegada em dezembro próximo.

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