Resenha: Este texto examina a complexa relação entre discriminação de gênero e fake news, explorando como a desinformação afeta a percepção de gênero, reforça estereótipos negativos e contribui para a violência e desigualdade de gênero. Ao abordar a interseção entre fake news e discriminação de gênero, pretende-se contribuir para uma compreensão mais profunda dos desafios enfrentados pelas mulheres na era digital e promover soluções eficazes para um ambiente informativo mais justo e equitativo. O artigo completo faz parte de um capítulo da obra intitulada "MAGNÍFICAS MULHERES: MULHERES NO SISTEMA DE JUSTIÇA", coordenada e/ou organizada por "DENISE PINHEIRO SANTOS MENDES, GIUSSEPP MENDES e JEFERSON ANTONIO FERNANDES BACELAR" a ser publicada pela Editora Fórum.
Em dezembro de 2023, o Brasil foi abalado pela trágica notícia do suicídio de Jéssica Canedo, uma jovem que se viu no centro de uma tempestade de fake news (G1, 2023). Tudo começou quando rumores falsos começaram a circular nas redes sociais, alegando que Jéssica estava tendo um caso com o famoso humorista Whindersson Nunes.
Essas notícias falsas se espalharam rapidamente, alimentadas por compartilhamentos incessantes e comentários maliciosos. Jéssica foi alvo de ataques e assédio online, sendo julgada e condenada publicamente com base em informações infundadas. Esse tipo de reação violenta e difamatória muitas vezes reflete um viés de gênero, onde mulheres são mais frequentemente culpabilizadas e envergonhadas em situações de escândalos sociais, evidenciando a discriminação de gênero enraizada na sociedade.
O caso de Jéssica Canedo serve como um exemplo doloroso do poder destrutivo das fake news e da necessidade urgente de abordar esse problema, não apenas como uma questão de desinformação, mas também como um reflexo da discriminação de gênero. A tragédia sublinha a importância de medidas eficazes para combater a disseminação de informações falsas e proteger indivíduos, especialmente mulheres, de campanhas de desinformação que podem ter consequências fatais.
A proliferação de fake newstem se tornado um fenômeno alarmante na sociedade contemporânea, exacerbado pelo rápido avanço das tecnologias de comunicação e pela popularização das redes sociais. As notícias falsas não apenas distorcem a realidade e manipulam a opinião pública, mas também perpetuam preconceitos e desigualdades sociais, incluindo a discriminação de gênero.
A discriminação de gênero no Brasil tem raízes profundas na formação histórica e social do país. Desde os tempos coloniais, as mulheres enfrentam um sistema patriarcal que limita suas oportunidades e direitos. A sociedade brasileira foi moldada por uma estrutura colonial que perpetuava a subordinação feminina, com as mulheres frequentemente relegadas a papéis domésticos e sem acesso à educação formal.
É um fenômeno complexo e multifacetado, enraizado em séculos de história patriarcal. As conquistas alcançadas ao longo dos anos são resultado de uma luta contínua e resiliente das mulheres brasileiras. No entanto, a caminhada rumo à verdadeira igualdade de gênero ainda é longa e exige esforços persistentes de toda a sociedade.
A luta contra a discriminação de gênero no Brasil tem sido fortalecida por uma série de legislações que buscam garantir a igualdade de direitos e proteger as mulheres contra a violência e a discriminação. Essas leis representam conquistas importantes no movimento pelos direitos das mulheres e são fundamentais para a promoção de uma sociedade mais justa e equitativa.
Sancionada em 7 de agosto de 2006, a Lei Maria da Penha foi um marco na proteção das mulheres contra a violência doméstica e familiar (Brasil, 2006). Nomeada em homenagem à Maria da Penha Maia Fernandes, a lei introduziu medidas rigorosas para punir os agressores e proteger as vítimas. Entre suas principais disposições, a lei define cinco formas de violência: física, psicológica, sexual, patrimonial e moral, e estabelece medidas protetivas de urgência, como o afastamento do agressor do lar e a proibição de contato com a vítima.
Outra lei que merece destaque é a Lei nº 12.845, sancionada em 2013, que dispõe sobre o atendimento obrigatório e integral de pessoas em situação de violência sexual (Brasil, 2013). A lei assegura o atendimento multidisciplinar às vítimas, incluindo cuidados médicos, psicológicos e sociais, além de acesso a informações sobre direitos legais e proteção. Essa legislação é fundamental para garantir que as vítimas de violência sexual recebam o suporte necessário para sua recuperação e proteção.
A promulgação da Lei nº 13.104/2015, conhecida como Lei do Feminicídio, foi outro passo significativo na legislação brasileira (Brasil, 2015). Essa lei alterou o Código Penal para incluir o feminicídio como uma circunstância qualificadora do homicídio, estabelecendo penas mais severas para os casos de homicídio de mulheres em razão do gênero. O feminicídio é definido como o assassinato de uma mulher em decorrência de violência doméstica e familiar, menosprezo ou discriminação à condição de mulher.
A inclusão do feminicídio no Código Penal brasileiro visa reconhecer a gravidade e a especificidade dos crimes de gênero, promovendo uma resposta mais rigorosa do sistema de justiça. Essa medida busca, também, aumentar a visibilidade desses crimes e sensibilizar a sociedade sobre a necessidade de combater a violência contra as mulheres.
Em 2018, a Lei nº 13.718 foi sancionada, criminalizando a importunação sexual e tipificando o crime de divulgação de cenas de estupro e nudez sem consentimento (Brasil, 2018). Essa lei, que foi motivada pelos ataques sofridos pela professora e blogueira Lola Aronovich, responde a novas formas de violência e assédio que surgiram com o avanço da tecnologia e das redes sociais, garantindo que esses atos sejam punidos de maneira adequada.
A criminalização da violência psicológica contra a mulher foi possível graças à Lei 14.188/2021, que também instituiu o programa de cooperação "Sinal Vermelho contra a Violência Doméstica" (Brasil, 2021). A normativa determina, ainda, o imediato afastamento do lar do agressor quando há risco, atual ou iminente, à vida ou à integridade física ou psicológica da mulher.
Além dessas leis, o PL nº 2630, de 2020, também conhecido como Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, visa estabelecer normas, diretrizes e mecanismos de transparência para redes sociais e serviços de mensageria privada. Seu principal objetivo é combater a desinformação e aumentar a transparência sobre conteúdos pagos, abordando assim um problema que se tornou crítico na era digital (Brasil, 2020). Acredita-se que o PL pode combater a discriminação de gênero de várias maneiras ao abordar diretamente a disseminação de desinformação e promover a transparência e a responsabilidade das plataformas digitais. As disposições do PL contribuem significativamente para a luta contra a discriminação de gênero, ao estabelecer normas e mecanismos que visam reduzir a propagação de fake news e aumentar a transparência sobre conteúdos pagos.
Apesar dos avanços legislativos, a implementação efetiva dessas leis enfrenta desafios significativos. A aplicação das medidas protetivas, por exemplo, muitas vezes é comprometida pela falta de recursos e infraestrutura adequados. Delegacias especializadas e centros de atendimento frequentemente enfrentam limitações orçamentárias e operacionais, dificultando o acesso das vítimas aos serviços de proteção e apoio.
Dito isso, importante se faz destacar que, as fake news representam uma ameaça séria e multifacetada à sociedade moderna. Elas não apenas distorcem a realidade e manipulam a opinião pública, mas também têm o potencial de causar danos significativos em diversas áreas, como política, saúde e coesão social. O combate eficaz às fake news requer uma abordagem integrada que combine verificação de fatos, educação midiática, responsabilidade das plataformas de redes sociais, legislação adequada e colaboração internacional. Somente através de esforços coordenados e sustentados será possível mitigar os efeitos perniciosos das fake news e promover um ambiente informativo mais saudável e confiável.
A proliferação de fake newsé um fenômeno complexo que envolve múltiplos mecanismos e atores. As notícias falsas se espalham através de diversas plataformas e utilizam estratégias sofisticadas para alcançar e influenciar o maior número possível de pessoas. Entender esses mecanismos é crucial para desenvolver estratégias eficazes de combate à desinformação.
Ademais, o impacto das fake news na percepção de gênero é um fenômeno complexo e prejudicial que afeta a sociedade de múltiplas maneiras. Fake news não apenas desinformam, mas também reforçam estereótipos de gênero, perpetuam preconceitos e contribuem para a desigualdade de gênero. Este impacto é especialmente pernicioso porque atua em diversos níveis, desde a individualidade das vítimas até a estrutura social mais ampla.
O reforço dos estereótipos de gênero é uma das principais consequências da disseminação de conteúdos falsos na internet, conforme aponta a pesquisa do NetLab - Laboratório de Estudos de Internet e Redes Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) (Santini et al., 2024).
O impacto psicológico nas vítimas de fake news é significativo. Mulheres que são alvo de notícias falsas frequentemente enfrentam assédio, bullying e ataques online, o que pode levar a sérios problemas de saúde mental, incluindo ansiedade, depressão e, em casos extremos, suicídio. A pressão social e a exposição negativa podem ser devastadoras, afetando a autoestima, a honra e a reputação das vítimas.
Além do impacto individual, as fake news também afetam a percepção coletiva de gênero. Ao perpetuar estereótipos e desinformação, essas notícias contribuem para a manutenção de uma cultura de desigualdade. A percepção de que mulheres são menos capazes ou que devem ser confinadas a certos papéis sociais é reforçada, dificultando a luta pela igualdade de gênero.
Para as mulheres, as fake news frequentemente assumem a forma de ataques pessoais que visam sua integridade, moralidade e capacidade profissional. Notícias falsas sobre mulheres, especialmente figuras públicas e lideranças femininas, tendem a ser mais sensacionalistas e difamatórias. Essas narrativas exploram estereótipos de gênero, retratando mulheres como emocionalmente instáveis, incapazes e moralmente comprometidas. Como resultado, as mulheres são mais vulneráveis a sofrer danos reputacionais e emocionais severos devido a essas campanhas de desinformação.
Como visto, a análise da interseção entre discriminação de gênero e fake news revela um quadro alarmante de como a desinformação pode exacerbar desigualdades sociais e perpetuar estereótipos prejudiciais. As fake news, ao distorcerem a realidade e manipularem a opinião pública, não apenas alimentam preconceitos existentes, mas também criam novos desafios para a promoção da igualdade de gênero. A tragédia de Jéssica Canedo exemplifica o impacto devastador que as notícias falsas podem ter, demonstrando a necessidade urgente de medidas eficazes para combater essa problemática.
O histórico da discriminação de gênero no Brasil mostra um longo caminho de luta e resistência, com importantes avanços legislativos como a Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio. No entanto, a implementação dessas leis enfrenta desafios contínuos devido a barreiras culturais e estruturais. A proliferação de fake news intensifica esses desafios, tornando ainda mais difícil para as mulheres alcançarem igualdade de oportunidades e proteção contra a violência.
Em conclusão, a luta contra a discriminação de gênero e a desinformação exige um compromisso constante e ações concretas. As fake news não apenas prejudicam indivíduos, mas também enfraquecem o tecido social e democrático. Ao abordar a interseção entre fake news e discriminação de gênero, este artigo destaca a importância de uma resposta abrangente e integrada para construir uma sociedade mais justa e equitativa para todos.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm. Acesso em: 21 maio 2024.
______. Lei nº 12.845, de 1º de agosto de 2013. Dispõe sobre o atendimento obrigatório e integral de pessoas em situação de violência sexual. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12845.htm. Acesso em: 21 maio 2024.
______. Lei nº 13.104, de 9 de março de 2015. Altera o art. 121 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, para prever o feminicídio como circunstância qualificadora do homicídio, e o art. 1º da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, para incluir o feminicídio no rol dos crimes hediondos. Disponível em:
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13104.htm. Acesso em: 21 maio 2024.
______. Lei nº 13.718, de 24 de setembro de 2018. Altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, para tipificar os crimes de importunação sexual e de divulgação de cena de estupro, de estupro de vulnerável, de cena de sexo ou pornografia, e para tornar pública incondicionada a ação penal nos crimes contra a dignidade sexual, e dá outras providências. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13718.htm. Acesso em: 21 maio 2024.
______. Lei nº 14.188, de 28 de julho de 2021. Define o programa de cooperação Sinal Vermelho contra a Violência Doméstica como uma das medidas de enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher previstas na Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha), e no Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), em todo o território nacional; e altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), para modificar a modalidade da pena da lesão corporal simples cometida contra a mulher por razões da condição do sexo feminino e para criar o tipo penal de violência psicológica contra a mulher. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/l14188.htmAcesso em: 21 maio 2024.
______. Projeto de Lei nº 2630, de 2020. Institui a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet. Disponível em:
https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/141944. Acesso em: 22 maio 2024.
G1. Comentários nas redes sociais podem ter influenciado na morte de estudante mineira atacada na internet, diz delegado. 28 dez. 2023. Disponível em: https://g1.globo.com/mg/triangulo-mineiro/noticia/2023/12/28/comentarios-nas-redes-sociais-podem-ter-influenciado-na-morte-de-estudante-mineira-atacada-na-internet-diz-delegado.ghtml. Acesso em: 19 maio 2024.
SANTINI, R. Marie et al. Golpes, fraudes e desinformação na publicidade digital abusiva contra mulheres. Rio de Janeiro: NetLab - Laboratório de Estudos de Internet e Redes Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), 2024.
Por Moema Locatelli Belluzzo, Mestre em Direito, Justiça e Desenvolvimento pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP). Graduada em Direito. Especialista em Direito Civil e Processo Civil, Direito Ambiental, Direito Notarial e Registral. Tabeliã e Registradora no Estado do Pará.
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