Decisão de adequação da LGPD ainda exige Cláusulas Padrão | Análise
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Decisão de adequação da LGPD ainda exige Cláusulas Padrão

Por Alan Campos Thomaz e João Marcelo Oliveira, advogados do Campos Thomaz Advogados

19 de November 14h58

A transferência internacional de dados pessoais ocorre quando uma organização no Brasil envia informações para fora do país — seja para empresas do mesmo grupo, prestadores estrangeiros ou plataformas tecnológicas no exterior. Essencial à economia digital, esse fluxo precisa obedecer aos critérios da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que exige a manutenção de um nível de proteção equivalente ao nacional. Para isso, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) publicou, em 2024, a Resolução nº 19, que regulamenta quatro mecanismos: decisões de adequação, cláusulas contratuais padrão (SCCs), cláusulas contratuais específicas e normas corporativas globais.

Nesse contexto, um passo relevante foi dado recentemente com a publicação, pela Comissão Europeia, do draft de decisão de adequação do Brasil, reconhecendo que o país oferece um nível de proteção compatível com o exigido pelo Regulamento Geral de Proteção de Dados (GDPR). Se confirmada, a decisão permitirá a transferência de dados entre UE e Brasil sem salvaguardas adicionais, inserindo o país em um regime já consolidado no bloco europeu — que utiliza esse mecanismo com países como Japão, Reino Unido e Coreia do Sul. A expectativa agora é que a ANPD adote movimento recíproco, reconhecendo a UE como jurisdição adequada e simplificando ainda mais os fluxos transnacionais de dados.

Apesar do avanço, o alcance das decisões de adequação é limitado ao fluxo de dados entre as jurisdições reconhecidas. Se uma empresa também opera nos Estados Unidos, Ásia ou América Latina, continuará precisando de mecanismos complementares. Isso inclui, por exemplo, transferências intragrupo para países não adequados, parcerias com fornecedores estrangeiros, uso de nuvens com servidores globais ou operações envolvendo dados sensíveis fora da UE.

Mesmo no contexto europeu, essa limitação é clara. Uma decisão de adequação não cobre, por exemplo (i) Transferências intragrupo para filiais localizadas em países sem reconhecimento; (ii) Parcerias comerciais com fornecedores ou prestadores de serviço situados fora das jurisdições adequadas; (iii) Processamentos realizados em nuvens com servidores espalhados globalmente; ou ainda, (iv) operações específicas que envolvam dados pessoais em jurisdições não cobertas pela decisão.

É nesse cenário que as Cláusulas Contratuais Padrão (SCCs) assumem protagonismo. Assim como ocorreu no contexto do GDPR, no Brasil elas se consolidam como o mecanismo mais flexível, abrangente e eficiente para viabilizar transferências internacionais em ambientes empresariais complexos e distribuídos. As SCCs permitem que empresas mantenham a conformidade regulatória mesmo quando suas operações envolvem múltiplos países, diferentes regimes legais e fluxos de dados dinâmicos, funcionando como um complemento essencial às decisões de adequação. A ANPD fixou o prazo de 23 de agosto de 2025 para que empresas que já realizam transferências internacionais adotem as SCCs em seus contratos.

Na prática, porém, muitas organizações estão atrasadas nesse processo, que é mais complexo do que parece. A implementação exige mapeamento de parceiros e fluxos de dados, revisão de procedimentos de compras e contratação, ajuste das cláusulas de proteção de dados atualmente utilizadas, além de negociações contratuais e inclusão de aditivos com fornecedores e terceiros. Diante desse cenário, quem ainda não iniciou a adequação deixa de cumprir o prazo da ANPD e ter seus fluxos internacionais de dados comprometidos ou sujeitos a sanção pela autoridade.

Outro caminho possível para legitimar a transferência internacional de dados previsto na Resolução nº 19 são as cláusulas contratuais específicas e as normas corporativas globais. As cláusulas específicas são instrumentos elaborados sob medida pelas próprias empresas, voltados a cenários particulares de transferência. Já as normas corporativas globais consistem em políticas internas adotadas por grupos multinacionais para regular, de forma uniforme, o fluxo de dados pessoais entre suas diversas unidades ao redor do mundo.

Apesar de apresentarem um grau maior de personalização e adequação às particularidades de cada operação, ambos os mecanismos compartilham uma limitação relevante: sua utilização depende de análise e aprovação prévia da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD). Além disso, qualquer alteração posterior nesses instrumentos — seja em seu conteúdo ou em seu escopo de aplicação — exige nova aprovação da autoridade, o que os torna pouco adequados ao ambiente transacional dinâmico, marcado por constantes reestruturações societárias, mudanças contratuais e ajustes negociais. Na prática, essa exigência de avaliação prévia limita sua atratividade e aplicabilidade no curto prazo.

Além desses mecanismos regulamentados, a LGPD prevê outras hipóteses que poderão autorizar a transferência internacional de dados, quando vierem a ser regulamentadas pela ANPD. Entre elas estão os selos, certificados e códigos de conduta regularmente emitidos; acordos de cooperação internacional; autorização específica da autoridade; e hipóteses legais como o consentimento do titular, a execução de contratos, a proteção da vida e da saúde, decisões judiciais e administrativas. Embora mencionadas na legislação, essas alternativas ainda não contam com regulamentação da ANPD para sua aplicação com segurança jurídica.

Em um cenário global em que as operações empresariais dependem cada vez mais do fluxo transnacional de informações, a transferência internacional de dados pessoais deixou de ser um tema meramente regulatório e passou a ocupar papel estratégico nas decisões de negócio. A publicação do draft de decisão de adequação do Brasil representa um avanço relevante e sinaliza a consolidação do país no ecossistema global de proteção de dados, mas não elimina a necessidade de soluções complementares. Mecanismos como as Cláusulas Contratuais Padrão (SCCs) continuarão sendo indispensáveis para viabilizar transferências em ambientes complexos e dinâmicos, especialmente quando envolvem múltiplas jurisdições e parceiros fora do alcance das decisões de adequação.

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