Neste primeiro ano de vigência da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), Lei nº 13.709/2018, as polêmicas envolvendo a interpretação de seus dispositivos e a eficácia de sua aplicação fizeram parte do nosso cotidiano de notícias em jornais, revistas e mídias digitais.
Testemunhamos também algumas iniciativas junto à Câmara dos Deputados, em forma de projetos de lei, visando à modificação de dispositivos da LGPD. Dentre essas iniciativas está o Projeto de Lei nº 1.229/2021, de autoria de Carlos Henrique Gaguim, que "cria regras para garantir a proteção de dados do sistema nervoso central, definidos como dados neurais, obtidos a partir de qualquer sistema eletrônico, óptico ou magnético", conforme publicado na Agência Câmara de Notícias.
A PL 1.229/21 parece ser reflexo de discussões que estão acontecendo mais fortemente em outros países, em torno dos riscos envolvidos no acesso e uso por terceiros de "neural data" (dados neurais, numa tradução simples), coletados, por exemplo, por entidades de saúde ou centros de pesquisas de seus pacientes no tratamento de doenças ou na condução de pesquisas clínicas.
Dados neurais são dados gerados pelo cérebro humano. Na medida em que os dados neurais podem ser relacionados a uma pessoa identificada ou identificável, e revelam processos íntimos da esfera privada do indivíduo, há discussão se os dados neurais são dados pessoais, portanto, passíveis de amparo jurídico pela legislação de privacidade e proteção de dados.
Alguns estudos científicos sugerem que, com o rápido desenvolvimento de neurotecnologias não invasivas e escalonáveis, há riscos específicos associados à coleta, análise e uso de dados neurais orientadas a pacientes, mas para outras aplicações não-clínicas, por exemplo, em casos educacionais ou relacionadas ao trabalho e em algumas situações até para fins discriminatórios, como negativa de crédito, exclusão do plano de saúde.
Em 2019, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) publicou uma recomendação sobre Inovação Responsável em Neurotecnologia, reconhecendo que a neurotecnologia se movimenta rapidamente, às vezes segue caminhos incertos, acerta diretamente questões relacionadas à liberdade e privacidade, tem um grande potencial para o uso não-intencional, levanta inúmeras questões éticas e legais, e pode exigir formas ágeis de governança. De fato, a inovação em neurotecnologia exigirá ação conjunta em todos os níveis governamentais e nos setores privados.
Essas discussões, por exemplo, fomentaram a apresentação de um projeto de lei no Senado do Chile, em outubro de 2020, com o fim de realizar uma reforma constitucional para a neuroproteção. Basicamente, a coleta, o armazenamento, tratamento e compartilhamento de dados neurais dos indivíduos devem estar em conformidade com as disposições da lei local de doação e transplante de órgãos, e, no que for aplicável, ao código de saúde do país, sendo vedada a sua comercialização sob qualquer forma.
Muito embora, o autor da PL 1.229/21 tenha se inspirado na iniciativa chilena, sua proposta não é de criar uma lei autônoma ou de emenda constitucional, mas sim de incluir na LGPD o conceito de dado neural ("qualquer informação obtida, direta ou indiretamente, da atividade do sistema nervoso central e cujo acesso é realizado por meio de interfaces cérebro-computador invasivas ou não-invasivas"), classificá-lo como uma categoria especial de dado sensível relacionado à saúde, e, submetendo o seu tratamento (coleta, uso, armazenamento, compartilhamento) à obtenção do consentimento da pessoa a quem o dado neural se refere (titular dos dados, conforme LGPD).
Na justificação de motivos do referido PL 1.229/21, consta preocupação de seu autor quanto à manipulação de informações coletadas diretamente dos sistemas neurais de um indivíduo por empresas e Estados. Nesse sentido, consta no PL 1.229/21 a previsão de que as regras de exceção do artigo 4º da LGPD não se aplicam aos dados neurais. Isto quer dizer, que os dados neurais não poderão ser utilizados sem o prévio consentimento do indivíduo, mesmo que o seja para fins não lucrativos ou uso pelo Estado para fins de segurança pública ou defesa nacional. O tema é complexo.
Reconhece-se a iniciativa trazida na PL 1.229/21 e há que se fomentar discussões técnicas sobre os dados neurais, como as que foram conduzidas para determinar quando e porque os dados biométricos se tornam dados pessoais sensíveis e, portanto, devem integrar o rol de dados de proteção pela LGPD.
No entanto, um ponto a se debater é considerar ou não o dado neural em uma categoria independente, devendo ser submetido a uma proteção maior em relação aos demais dados pessoais sensíveis. Veja-se que há um reconhecimento na justificação do próprio autor da PL 1.229/21 de que o dado neural é um dado relacionado à saúde.
De fato, os dados neurais podem revelar o sucesso ou não de uma pesquisa clínica relacionado ao Alzheimer, por exemplo. Os dados de saúde, por sua vez, já estão classificados como dados pessoais sensíveis. Da mesma forma, os dados genéticos e os dados biométricos, que representam dados únicos e sensíveis do indivíduo, estão na categoria de dados pessoais sensíveis. Nesse sentido, o dado neural poderia ser incluído como um tipo da categoria de dado pessoal sensível que, com base na LPGD, já deve estar sujeito a um mecanismo de proteção mais elevada.
Outro ponto de revisão reside em tratar o consentimento como a única base legal de tratamento do dado neural. Na LGPD, o consentimento é uma das oito bases legais para o tratamento de dados pessoais sensíveis.
Dentro da sistemática adotada na LGPD, a base legal vai depender do fluxo e da finalidade de tratamento dos dados pessoais sensíveis. Se um paciente com tendência genética a ter Alzheimer procura uma clínica especializada para coletar e acompanhar os seus dados neurais, a base legal para esse tratamento será a tutela de saúde. No entanto, se o mesmo paciente se voluntaria a uma pesquisa clínica, em um primeiro momento, o seu consentimento o coloca dentro do grupo de pesquisa, e após, o procedimento deve transcorrer conforme a aprovação do comitê de ética e regulamentação legal específica.
Por outro lado, a vedação do compartilhamento de dados neurais trazido pelo PL 1.229/21, nos relembra as discussões sobre a possibilidade de compartilhamento de dados sensíveis referentes à saúde. No exemplo dado sobre pesquisa clínica, o médico pesquisador precisa compartilhar os resultados da pesquisa com a empresa que patrocina a eficiência de seu medicamento no tratamento da doença. A pandemia da Covid-19 nos mostrou os benefícios da pesquisa clínica ao nos fornecer as vacinas.
Cremos que a preocupação está na transparência e na gestão da finalidade no tratamento dos dados neurais, pontos que já integram os dispositivos da LGPD e são mandatórios.