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Como me mantive no mercado de trabalho sendo um advogado cego

Por Vinicius Monteiro Campos, sócio proprietário do Monteiro Campos Advocacia

22 de October de 2020 8h

O melhor daquilo que temos ou somos depende do respeito dos outros, afinal, o seu melhor jamais será socialmente reconhecido se antes de tudo já for desrespeitado. Acredito que esta é uma frase excelente para iniciar o atendimento do convite que recebi da Análise Editorial, o qual faço com muita satisfação, de apresentar um pouco da minha curta história.

Sou um advogado, vindo de uma família de classe média baixa, que iniciou a faculdade de Direito aos 17 anos numa universidade comum; acontece que eu sempre tive um diferencial, mas não um que me colocava passos à frente dos outros, ao contrário, que me fez iniciar a corrida numa colocação ruim na fila de arranque. Isto é, sou totalmente cego dos dois olhos.

Interessante introduzir discorrendo brevemente sobre a faculdade, onde consegui me adaptar bem, graças à tecnologia que já estava auxiliando os cegos com leitores de voz em computadores, de modo que necessitei de adquirir um notebook para digitar as aulas enquanto os professores falavam. As provas eram aplicadas com auxílio de um leitor e um transcritor, ou seja, alunos que se voluntariavam para esta atividade, sob supervisão de um funcionário.

Parece simples, porém, omiti até aqui alguns dos desafios: o primeiro foi o fato de que deixei de receber o ensino básico no fundamental e no ensino médio, pois estudei em escola pública e não sei hoje, mas naquele tempo essas eram realmente despreparadas. Assim, iniciei estudos próprios pessoais aos 14 anos quando ganhei meu primeiro computador, então tive de cursar Direito com o ensino básico aprendido nas noites em casa.

O segundo desafio foi, certa vez, ouvir um professor dizer que estava cansado de ouvir falar "o quanto aquele aluno, mesmo sendo cego, era estudioso", então ele iria desmistificar isso, pois não iria passar a mão na minha cabeça. No final do semestre, ele pediu desculpas para sala e me parabenizou. Houve outros desafios, que ficarão para outra oportunidade, para manter a leitura curta.

Como todos sabem, enquanto se estuda, todo o estudante de Direito quer estagiar em um escritório, e comigo não foi diferente. Todavia, infelizmente, não tive essa oportunidade. Todos os escritórios diziam estarem despreparados para mim, até que consegui uma vaga no administrativo de uma banca, mas de lá vi que não evoluiria.

Decidi então buscar outro local e fui parar num administrativo de uma imobiliária, aprendi tudo o que pude aprender sobre o mercado imobiliário, até que me formei em Direito e consegui a OAB enquanto atuava na imobiliária. Procurar emprego como advogado em escritórios foi novamente uma barreira, por causa da minha cegueira, ao passo que frustrado, optei por iniciar meu próprio escritório. A complicação inicial foi que eu almejava tornar meu escritório um player no mercado da advocacia empresarial. Porém, sem estrutura ou contato, parti para o Direito de Família e Direito Imobiliário.

Aconteceu que proprietários de imóveis mais caros e com problemas passaram a me procurar. Eles, por sua vez, eram empreendedores, de modo que finalmente consegui colocar meu escritório nos trilhos do Direito Empresarial, que desde então, tem se desenvolvido muito bem, através de consultas, elaboração de estratégias corporativas, estruturação de negócios, recuperação de empresas, bem como no desenvolvimento de negociações complexas, sem abandonar a base, que foi o Direito Imobiliário.

Onde estou hoje ainda não é o topo, considerando que o "topo" depende do ponto de vista interno de cada um. Desta maneira, minha história não é ainda os louros das glórias, tampouco um lamento, mas uma experiência real de um operador do Direito cego e cheio de disposição para construir muito mais.

Com o que vivi até aqui no mercado jurídico, identifiquei que os cegos ficam engessados a prestarem concursos, trabalharem no administrativo, seguir carreira solo, sendo poucos os que conseguem se desenvolver nesse último formato, ficando quase que fora de cogitação a contratação de advogados cegos em escritórios de grande porte ou em departamentos jurídicos de grandes empresas. E qual será a causa?

Bem, todo advogado cego precisa de um assistente, o que pode representar mais custo. Além disso, já vi o cego ser substituído pelo próprio assistente dentro da empresa ou da banca, haja vista que há certa desconfiança das capacidades de um cego manter tudo dentro do "copo", sem deixar "transbordar". Eu mesmo tenho hoje a oportunidade de desenvolver trabalhos no Direito Empresarial, contudo, sempre ao prospectar, encontro clientes em potencial que dizem serem minhas propostas muito boas, mas quando saio da reunião, já ocorreu de chegar em mim conversas tais como "Se deixo meus casos com um cego, como ele vai ver as provas?".

Enfim, em parte, citando o aforisma 226 de Baltasar Gracian, penso que: "Obrigar-se aos outros custa pouco e vale muito; não existe na casa do universo um único utensílio que, por mais insignificante, não seja necessário pelo menos uma vez por ano; Vale pouco, mas faria muita falta".

E é evidente que cada um fala das coisas segundo seus afetos, aqui expus os meus, que espero causar algum efeito, afinal, se "com palavras se compra grandes obras", talvez estas comprem a conscientização e uma referência de esforço aos que reclamam muito da vida.

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