Fusões e aquisições são operações que transformam o cenário corporativo global, porém, essas transações carregam riscos consideráveis, especialmente em tempos de instabilidade econômica. Para reduzir as incertezas e prevenir a "manutenção das coisas" (EIZIRIK, 2024) entre a assinatura do contrato e seu fechamento — período chamado de interim period —, as partes costumam recorrer a ferramentas contratuais como as cláusulas Material Adverse Change (MAC) e Material Adverse Effect (MAE).
Em essência, as cláusulas MAC e MAE funcionam como mecanismos de contingência. Elas permitem ao comprador rescindir o acordo ou renegociar seus termos caso ocorra um evento que altere significativamente o valor ou a viabilidade da empresa-alvo. Para o vendedor, por outro lado, a obrigação de manter as operações no curso normal durante o interim period é um contrapeso que busca evitar que o comprador utilize essas cláusulas como uma saída injustificada da transação.
A cláusula MAC permite a uma das partes, geralmente o comprador, rescindir ou renegociar um acordo de M&A caso ocorra uma mudança significativa e adversa nas condições da empresa-alvo ou no ambiente em que ela opera (MARTINS-COSTA, 2022). Tais mudanças podem incluir quedas abruptas no desempenho financeiro, perda de clientes-chave ou eventos macroeconômicos que alterem substancialmente o valor do negócio.
Similarmente, a cláusula MAE define um evento ou circunstância que tenha um impacto material negativo sobre o valor, as operações ou as perspectivas da empresa-alvo (MILLER, 2021). Essa cláusula pode abranger tanto mudanças específicas (MAC) quanto efeitos contínuos e duradouros que prejudiquem a operação, ativos, passivos ou projeções financeiras de uma empresa. Como exemplo, uma recessão econômica que afete severamente o setor de atuação de uma empresa, causando impactos negativos longos, pode ser interpretado como um MAE.
Dessa forma, enquanto a cláusula MAC geralmente permite que o comprador rescinda o contrato antes do fechamento da transação caso ocorra uma mudança adversa relevante, a cláusula MAE tem um escopo mais amplo, influenciando obrigações pós-fechamento, como indenizações contratuais ou ajustes financeiros.
A cláusula MAE tende a ser mais prospectiva, considerando impactos adversos já ocorridos ou futuros que possam justificar a rescisão do acordo, enquanto a MAC tende em focar em mudanças significativas que tenham alterado substancialmente as condições do contrato desde a sua assinatura.
As cláusulas MAC e MAE figuram como ponto focal na alocação de riscos durante o interim period. Em negociações, essas cláusulas podem ser objeto de debates entre as partes, pois definem os limites do que constitui um "evento material", influenciando diretamente o equilíbrio de poder na transação.
Em fevereiro de 2020, antes que a pandemia de COVID-19 revelasse seu impacto global, a L Brands, varejista norte-americana e empresa-mãe da Victoria’s Secret, assinou um acordo para vender 55% da marca à Sycamore Partners, uma firma de private equity, por cerca de US$ 525 milhões. Com a escalada da pandemia em março daquele ano, lockdowns forçaram o fechamento generalizado de lojas físicas, incluindo as da Victoria’s Secret, levando a Sycamore Partners a tentar rescindir o acordo. A firma alegou que a interrupção das operações e o impacto financeiro configuravam uma mudança adversa material sob a cláusula MAC do contrato, enquanto a L Brands insistiu que a venda deveria prosseguir, argumentando que os efeitos da pandemia eram gerais ao setor de varejo, não exclusivos à Victoria’s Secret, e que o contrato incluía exclusões para eventos como desastres naturais ou crises econômicas globais, enquadrando a pandemia como um risco fora de seu controle.
O litígio chegou ao Delaware Court of Chancery, mas, antes de uma decisão final, as partes chegaram a um acordo extrajudicial em maio de 2020, reduzindo o preço e cancelando formalmente a venda. Apesar disso, os registros iniciais e análises jurídicas sugerem que o tribunal inclinava-se a rejeitar a invocação da MAC pela Sycamore, considerando que o impacto da pandemia era setorial, afetando todo o varejo, e não específico à empresa-alvo, além de estar coberto pelas exclusões contratuais para eventos macroeconômicos (FRANKEL, 2020).
Em outro cenário, em abril de 2017, a Fresenius Kabi AG, uma empresa alemã do setor de saúde, concordou em adquirir a Akorn, Inc., uma fabricante norte-americana
de medicamentos genéricos, por US$ 4,3 bilhões, com o acordo sujeito a condições padrão, incluindo uma cláusula MAE que permitia à Fresenius desistir se ocorresse uma mudança adversa material antes do fechamento. Durante a due diligence posterior, a Fresenius descobriu problemas graves na Akorn, como violações regulatórias junto à FDA (Food and Drug Administration), incluindo falhas na integridade de dados em processos de fabricação, e uma queda significativa no desempenho financeiro, com perdas de receita e lucros muito além do esperado para flutuações normais (HALPER, APFELROTH, 2018).
Em abril de 2018, a Fresenius tentou rescindir o acordo, invocando a cláusula MAE, enquanto a Akorn rebateu, alegando que os problemas eram exagerados ou temporários e que a Fresenius buscava apenas uma justificativa para abandonar a transação.
O caso foi julgado pelo Delaware Court of Chancery, que, em outubro de 2018, emitiu uma decisão a favor da Fresenius, permitindo a saída do acordo. Concluiu-se que os problemas eram específicos à Akorn, não reflexos do setor farmacêutico como um todo, com uma deterioração financeira quantitativamente significativa - uma queda de mais de 20% no valor da empresa - e qualitativamente grave, devido a riscos regulatórios que ameaçavam sua viabilidade, além de serem persistentes, sem sinais de resolução iminente, atendendo ao critério de um efeito adverso duradouro (SCHWARTZ, 2018).
Diferentemente do caso L Brands, onde a crise era externa, aqui os problemas eram internos e intrínsecos à Akorn, o que tornou a MAE uma ferramenta poderosa. A decisão marcou uma das raras vezes em que o tribunal de Delaware validou a aplicação de uma MAE para rescisão contratual, elevando o padrão de due diligence em M&A e destacando a importância de cláusulas bem redigidas para definir materialidade.
Em síntese, as cláusulas MAC e MAE são essenciais em operações de M&A, pois equilibram a proteção do comprador contra mudanças adversas significativas com a segurança do vendedor em manter suas operações estáveis até o fechamento do negócio. A clareza e precisão dessas cláusulas são fundamentais para definir os
riscos assumidos pelas partes e assegurar sua aplicação efetiva diante das incertezas do mercado.
Peter Odebrecht é advogado do DMGSA - Domingues Sociedade de Advogados.
Os artigos e reportagens assinadas não refletem necessariamente a opinião da editora, sendo de responsabilidade exclusiva dos respectivos autores.