"Clube da Esquina" e a trama dos Direitos de Imagem: Quando "Tudo o que Você Podia Ser" se torna uma questão jurídica | Análise
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"Clube da Esquina" e a trama dos Direitos de Imagem: Quando "Tudo o que Você Podia Ser" se torna uma questão jurídica

Por Tatiana Kauffmann e Rodrigo Ramos, advogados do Cascione Advogados

3 de October de 2023 17h23

O embate jurídico em torno dos Direitos de Imagem é, muitas vezes, uma narrativa complexa, na qual os personagens se deparam com situações imprevisíveis. O caso a seguir não foi exceção e sua singularidade é objeto de debate.

Em 17 de dezembro de 2012, José Antonio Rimes, conhecido como "Tonho," e Antonio Carlos Rosa de Oliveira, apelidado de "Cacau," surgiram como protagonistas inesperados em uma batalha judicial. Eles ingressaram com uma ação judicial para obter indenização por danos morais e uso indevido de imagem contra Milton Nascimento, Lô Borges, a gravadora EMI Music Brasil Ltda. e a Editora Abril.

A origem desse conflito remonta a um momento mágico em 1971. Naquela época, dois amigos inseparáveis, Tonho e Cacau, ainda crianças, foram capturados pela curiosa lente do fotógrafo pernambucano, Carlos da Silva Assunção Filho, conhecido como "Calfi." O cenário era próximo a Nova Friburgo, no Rio de Janeiro, quando um modesto fusquinha cruzou o caminho deles. Os ocupantes do veículo os estimularam a olhar para a câmera, e, assim, sem qualquer premeditação, suas imagens foram eternizadas.

Naquele instante, Tonho e Cacau não tinham a menor ideia de que se tornariam os rostos anônimos da icônica capa do LP "Clube da Esquina." Também não imaginavam que o álbum se tornaria uma das maiores representações da música popular brasileira, com inúmeras edições e uma influência que transcenderia décadas.

A verdadeira descoberta aconteceu 40 anos depois, quando o Jornal Estado de Minas decidiu celebrar o 40º aniversário do "Clube da Esquina." A busca pelos dois jovens da capa envolveu cartazes com a reprodução fotográfica, entrevistas com moradores locais e até mesmo um anúncio na rádio local. O resultado surpreendeu a todos, pois revelou que os "meninos da capa" não eram, na verdade, Milton Nascimento e Lô Borges, como muitos acreditavam.

A partir daí, como a letra de uma das canções do álbum sugere, "nada seria como antes". A descoberta impactou fãs e artistas que acreditaram por décadas que a capa do "Clube da Esquina" retratava seus ídolos. No entanto, o destino tinha mais surpresas reservadas para Tonho e Cacau.

Em uma homenagem aos 40 anos do álbum, eles concordaram em recriar a fotografia icônica. Contudo, não tinham conhecimento de que a imagem seria novamente utilizada. Desta vez, no CD "Coleção Milton Nascimento", lançado pela Editora Abril em abril de 2012.

Isso desencadeou uma série de eventos legais que lançaram luz sobre a complexa questão dos direitos de imagem. Tonho e Cacau buscaram a justiça para pleitear indenizações decorrentes do uso comercial da sua imagem sem a sua prévia autorização.

Na  terça-feira, 05/09, o juízo da 1ª Vara Cível da Comarca de Nova Friburgo, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, extinguiu o processo movido por Tonho e Cacau, ante o entendimento de que a pretensão à indenização estaria prescrita em razão da ampla exposição da obra artística. Essa decisão levanta uma questão fundamental e controversa: até que ponto a expressão artística justifica o uso indevido da imagem de alguém, especialmente quando essa utilização possui fins econômicos?

A batalha legal em curso suscita, ainda, importantes discussões sobre a prescritibilidade do uso indevido de imagem, especialmente quando esse uso ocorre de forma permanente e continuada, como ocorreu no caso de Tonho e Cacau, que tiveram sua imagem utilizada por mais de 50 anos.

O Tribunal de Justiça Carioca já se pronunciou em casos semelhantes, estabelecendo - em sentido diametralmente oposto ao adotado na sentença - que o prazo prescricional se renova a cada nova publicação não autorizada. De acordo com o entendimento firmado, a ofensa ao direito à imagem se materializaria com a sua mera utilização sem autorização, desde que o conteúdo seja capaz de individualizar o ofendido e mesmo que não viole a honra ou a intimidade da pessoa.

Essa interpretação levanta questões essenciais sobre a proteção dos direitos individuais em um tempo em que a imagem desempenha um papel cada vez mais central. Acredita-se, portanto, que essa disputa está longe de seu verdadeiro fim. Tonho e Cacau, inclusive, deverão recorrer ao Tribunal de Justiça do Rio para tentar reverter a decisão desfavorável proferida pelo juízo de primeira instância.

Até o momento, o que se pode concluir é que a trajetória dos "meninos da capa" do "Clube da Esquina" ilustra como a vida é imprevisível, e que os encontros casuais podem impactar nosso destino de maneiras surpreendentes, principalmente em uma era na qual a tecnologia permite que nossas imagens sejam disseminadas instantaneamente e por tempo indeterminado. Nesse contexto, a proteção dos direitos de imagem se torna mais relevante do que nunca, e cada decisão judicial exerce um impacto direto no modo como o futuro dessa proteção será moldado.

Portanto, à medida em que a disputa legal se desenrola, nós, como sociedade, somos chamados a participar de um diálogo essencial sobre a relação entre a expressão artística, a salvaguarda dos direitos individuais e a influência do tempo em nossas vidas. A trajetória dos "meninos da capa" nos recorda que a vida muitas vezes se constrói a partir de acasos, como aquele instante singular em que um modesto fusquinha cruzou o caminho de duas crianças no interior do Rio de Janeiro. No entanto, também nos desafia a encontrar um equilíbrio entre a liberdade criativa e o respeito pelos direitos daqueles cujas imagens são eternizadas.

Tatiana Kauffmann é advogada especialista em Contencioso e Arbitragem do Cascione Advogados. Bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pós-Graduada em Direito Processual Civil pela Fundação Getúlio Vargas - São Paulo.

Rodrigo Ramos é advogado especialista em Contencioso e Arbitragem do Cascione Advogados. Bacharel em Direito pela Faculdade Nacional de Direito, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pós-graduando em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro (FGV-RIO).

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