Advogar no dia a dia significa acompanhar não somente as tendências do mercado, mas também a atuação arrecadatória dos entes públicos, presente em quase todos os níveis da administração pública.
Imagine você, médico (ou outro profissional liberal), operando sua sociedade (clínica ou sociedade individual) conforme orientação do seu contador, sendo surpreendido com uma cobrança de ISS retroativo dos últimos cinco anos, calculado sobre o faturamento mensal, acrescido de multa e juros. A conta é alta, o susto maior, e a indignação, compreensível.
É nesta esteira que os escritórios de advocacia vêm recebendo cada vez mais demandas de sociedades uniprofissionais, em razão do entendimento extrapolativo das prefeituras em relação à forma pelas quais as sociedades uniprofissionais devem se organizar, sem qualquer fundamento legal para tanto.
Para contextualizar, o ISS é o tributo municipal incidente sobre a prestação de serviços, com alíquota entre 2% e 5% aplicada sobre o preço dos serviços.
Não obstante, existe o regime especial de recolhimento do ISS para sociedades uniprofissionais, que permite às empresas formadas exclusivamente por profissionais habilitados de uma mesma área (como médicos, engenheiros, dentre outros) calcular o imposto com base em um valor fixo por profissional, em vez da cobrança sobre o faturamento bruto da sociedade.
Na prática, a adoção do referido regime especial de recolhimento do ISS reduz significantemente a carga tributária da sociedade uniprofissional.
Ocorre que as prefeituras vêm adotando entendimentos restritivos em relação à forma de organização das sociedades uniprofissionais, muitas vezes fundamentados na redação do contrato social da sociedade e na atuação dos sócios profissionais.
Portanto, aquele contrato social redigido anos atrás, com todas as previsões habituais de sociedade, vem sendo utilizado como argumento pelas prefeituras para desenquadrar as sociedades uniprofissionais do regime diferenciado do ISS, sob alegação de que eventuais elementos de empresa desenquadrariam a natureza das sociedades uniprofissionais.
Trata-se de entendimento absolutamente equivocado, reversível e defensável perante os tribunais.
Os argumentos municipais são variados e desproporcionais, desde simples menção no contrato social sobre possibilidade de abertura de filial, até a adoção do tipo jurídico de sociedade limitada ou distribuição desproporcional de lucros entre sócios (embora uma sociedade uniprofissional de médicos distribua lucros conforme a produção individual, e não pelo capital).
Nesse contexto, o STJ (Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei n° 3608 /MG), em 2024, reafirmou o entendimento de que sociedades médicas constituídas sob a forma limitada, mesmo quando contam com colaboradores e auxiliares, têm direito ao regime diferenciado de ISS aplicável às sociedades uniprofissionais.
Em outro caso, o TJSP (Apelação / Remessa Necessária 1002249-95.2023.8.26.0584, j. em 6/3/2025) cancelou a cobrança promovida pela Prefeitura de São Paulo e fundamentada no fato de a sociedade médica atuar em múltiplas especialidades.
A ideia aqui não é esmiuçar teses jurídicas sobre a incidência do imposto ou natureza ou não da atividade empresária, mas servir de alerta aos profissionais autônomos que se organizam em sociedades uniprofissionais, recolhendo o ISS fixo por profissional.
Nesse contexto, é relevante destacar que o STJ, no Tema Repetitivo 1323 (afetado em 4/4/2025), julgará de forma definitiva e vinculante a possibilidade de sociedades uniprofissionais constituídas como limitadas usufruírem do regime de ISS fixo. Considerando que as Cortes Superiores têm aplicado, com frequência, a modulação de efeitos em seus últimos julgamentos, torna-se ainda mais importante que os contribuintes se antecipem para mitigar riscos e potenciais impactos.
São algumas as alternativas possíveis: (i) preventivas, no sentido de revisar o contrato social vigente, mitigando riscos presentes e futuros perante a prefeitura; e/ou (ii) repressivas, questionando eventual desenquadramento do regime especial e, se for o caso, requerendo o ISS recolhido de forma indevida.
São tantas as frentes arrecadatórias dos entes públicos, que às vezes cabem exclusivamente aos contribuintes a iniciativa de se proteger para evitar surpresas indesejadas.
Eduardo Salles de Carvalho Pinto, advogado das áreas de Societário, M&A e Contratos do SouzaOkawa, com ampla experiência nas diversas áreas do direito empresarial.
Gustavo Bretas Nascimento Baptista, advogado da área tributária do SousaOkawa, com atuação principalmente voltada a representação de empresas nacionais e estrangeiras de grande porte
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