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Até onde a Constituição permite tributar

Por Angel Ardanaz, advogado da Ardanaz Sociedade de Advogados

6 de May 15h58

É recorrente, no cenário jurídico-tributário brasileiro, a tentativa de estender a competência da União em matéria de tributação sobre o consumo. A recente proposta de Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) reacende um debate técnico sobre os limites impostos pela Constituição Federal aos entes federativos, especialmente à União, no tocante à repartição de competências tributárias.

A Constituição Federal estabelece uma divisão entre tributos que podem ser cobrados pelos entes da federação com base em diferentes critérios de competência. No campo da tributação sobre o consumo, atribui-se à União a instituição de impostos seletivos e contribuições sociais, desde que respeitados os princípios da não-cumulatividade, da anterioridade e da destinação vinculada, conforme os artigos 153, 154 e 195 da Carta Magna.

No entanto, a tentativa de instituir uma CBS com incidência sobre bens e serviços, nos moldes da Proposta de Emenda à Constituição que tramita como reforma tributária, traz um ponto de tensão relevante. A proposta amplia o campo de incidência das contribuições sociais sobre a receita, com base na Lei nº 10.637/2002, a Lei nº 10.833/2003 e no Decreto-Lei nº 1.598/1977. Entretanto, ao estender a base de cálculo da CBS para abranger toda e qualquer receita, inclusive receitas operacionais e não operacionais, há um possível conflito com o modelo constitucional vigente.

O Supremo Tribunal Federal já se pronunciou sobre o alcance da base de cálculo das contribuições sociais sobre a receita ou faturamento. A jurisprudência é clara ao afirmar que o conceito de "receita bruta" deve estar vinculado ao resultado da atividade empresarial típica, o que não autoriza a incidência sobre valores alheios à circulação de bens e serviços.

Nesse cenário, a CBS, tal como formulada, pode ultrapassar a competência material conferida à União para legislar sobre contribuições sociais, violando o pacto federativo e o princípio da legalidade estrita em matéria tributária. A adoção de uma base ampla, que desconsidere a essencialidade da atividade de consumo, gera incerteza jurídica quanto à natureza da exação pretendida.

É relevante lembrar que a Constituição define, com clareza, as competências privativas dos Estados e Municípios em matéria de tributação sobre o consumo. O ICMS e o ISS têm fundamento constitucional próprio, e a tentativa de substituí-los por uma contribuição de competência da União pode desfigurar o modelo federativo estabelecido.

Do ponto de vista técnico, a proposta da CBS apresenta um desafio: o equilíbrio entre a simplificação do sistema e a observância dos limites constitucionais. A uniformização de tributos sobre o consumo deve respeitar os critérios de repartição de competências e não pode converter, de maneira indireta, uma contribuição social em imposto geral sobre o consumo.

Além disso, ao tratar da não-cumulatividade, a proposta da CBS reproduz um mecanismo semelhante ao do PIS e da COFINS, mas sem observar a distinção fundamental entre contribuição e imposto. Esse ponto reforça o debate sobre a natureza jurídica da CBS, especialmente quando analisada à luz do artigo 195, inciso I, alínea "b", da Constituição Federal.

Na condição de advogado tributarista, vejo nesse debate uma oportunidade de reflexão sobre os limites do legislador ordinário e o papel do Poder Judiciário na preservação do texto constitucional. A delimitação clara das competências tributárias é um dos pilares do Estado Federal e não pode ser relativizada por iniciativas legislativas que busquem contornar restrições constitucionais por meio de mudanças formais na denominação dos tributos.

Angel Ardanaz é advogado na Ardanaz Sociedade de Advogados e Professor Universitário nas disciplinas de Direito Empresarial e Direito Tributário.

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