Arcabouço Fiscal e a Reforma Tributária: entre profecias e heresias | Análise
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Arcabouço Fiscal e a Reforma Tributária: entre profecias e heresias

Por Caio Cesar Nader Quintella, sócio do escritório Ogawa, Lazzerotti e Baraldi Advogados

23 de May de 2023 7h30

Dentro de complexo e bastante conflituoso contexto político sobre o teto de gastos públicos, dividido pelas narrativas de sua necessidade e presteza ou da sua obsolescência e perversidade, surgiu a proposição de um novo arcabouço fiscal pelo governo recém-empossado.

Tal plano de finanças, às vezes elevado à condição messiânica para todas as mazelas nacionais, resume-se, ao fim e ao cabo, a um conjunto de normas, regras e sistemáticas que o Estado propõe adotar e observar na utilização dos recursos disponíveis (e previstos, diga-se) para a realização dos objetivos e na gestão da nação. De maneira mais pragmática, é uma nova modalidade para o controle de gastos públicos, inclusive em substituição à limitação fixa e inerte, mas ainda preservando a austeridade.

O delineamento do arcabouço proposto, em suma e apenas tangenciando alguns de seus aspectos, privilegia a consecução dos programas sociais, inclusive de direta intervenção e auxílio pelo Estado, concedendo, também, maior flexibilidade e dinâmica para os investimentos em setores essenciais, como educação e saúde. Irrepreensíveis tais iniciativas.

Porém, para isso se apresenta um novo mecanismo, pelo qual seria possível o aumento da despesa pública se, da mesma forma, ainda que não de forma estritamente direta e proporcional, for verificado aumento de arrecadação, dentro de um amplo racional do tão conhecido emparelhamento periódico entre receitas e despesas.

Eis, aqui, o ponto que merece maior atenção dentre toda essa nova propositura.

Isso, pois, primeiro e como premissa, deve se considerar o inafastável, natural e correto, interesse dos governantes e administradores da coletividade no incremento da disponibilidade e aumento da aplicação de recursos financeiros nas suas atividades, em prol sociedade e da solidez do Estado - mas também indissociável da busca pela demonstração de sucesso daquele governo eleito.

Da mesma forma, considerando a implementação de dinâmica normativa que possibilitaria a desejada elevação de dispêndios quando percebido um mesmo acréscimo de receitas, que ocorre primordialmente por meio da arrecadação tributária, tal relação de obrigação entre particular e público ganha mais importância e se torna mais delicada.

Revela-se, assim, mais sedutora a ideia de que todo aumento nos tributos pagos ao Estado pela iniciativa privada e seus cidadãos, voluntariamente ou por execução, representará uma equivalente melhoria social. Ainda que esse corolário tenha raízes na verdade, é muito perigosa a sua adoção e implementação sem limitação ou freio eficaz, imune ao estigma sofista de contrariedade ao interesse comunitário.

Fazendo tal papel tão basilar, apresenta-se a ancestral figura da legalidade, a qual, por sua vez, enraíza-se na segurança jurídica e na certeza do Direito, como as cláusulas que viabilizam o pacto para o convívio em sociedade, confirmada pelo (apenas aparente) paradoxo de que o verdadeiro interesse público é proteger, primeiro e acima de tudo, as garantias e os direitos individuais de cada cidadão e entidade - as únicas partículas reais e concretas que formam a concepção de nação, não podendo, nem em nome da ficção do Estado e sua missão, negociar ou relativizar a integridade do patrimônio jurídico dos particulares.

Aqui o tema se vincula aos esforços para promover uma reforma tributária, há tanto esperada no Brasil, da mesma forma ou mais ainda do que o retorno de D. Sebastião. Nesse sentido, vem sendo repetido e assegurado que o novo sistema tributário e suas espécies não iriam aumentar a arrecadação, ainda que isso possa representar a providencial solução financeira, dentro do arcabouço fiscal pretendido.

Promete-se que apenas haverá uma otimização da carga tributária já existente, ainda que seja inegável a detecção de maior oneração de alguns setores, como o de serviços e o imobiliário, por exemplo. Só vendo para crer, lembrando que depois de aprovada a nova Lei, não há pecado, culpa ou excesso.

Mas os sinais reforçam o ceticismo: nas medidas tributárias isoladas, prévias ou preparatórias, para a reforma tributária, veiculadas esse ano por Medidas Provisória, estampa-se a franca, confessa e objetiva intenção de incrementar a arrecadação federal, sem reais avanços na relação cooperativa entre Fisco e contribuintes. Mais do que isso e muito mais preocupante é a postura e os pronunciamentos das Autoridades Fazendárias diante de julgamentos de temas do contencioso tributários, seja em esfera administrativa ou no Poder Judiciário, estabelecendo vinculações enviesadas e profanas entre o controle da legalidade, exercido de maneira independente pelos Tribunais, das normas e relações obrigacionais anteriormente instituídas, e as novas medidas fiscais a serem adotadas, imediatamente, inclusive para viabilizar a redenção fiscal por meio do novel arcabouço.

Se, nesse mesmo caminho, a reforma tributária - indisputavelmente necessária e desejada, que vem sendo elaborado por grandes sacerdotes técnicos - ter de se ajustar ou, mesmo depois de apresentada, se curvar para atender aos novos mecanismos de controle fiscal ao invés preces dos atores das relações tributárias, de nada valeu a fé depositada nessa valiosa oportunidade de adequação do sistema tributário nacional.

Caio Cesar Nader Quintella é sócio do escritório Ogawa, Lazzerotti e Baraldi Advogados, além de professor e mestre pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Também é ex-Conselheiro Titular da Câmara Superior e Vice-Presidente da 1ª Seção do CARF - Conselho Administrativo de Recursos Fiscais.

Os artigos e reportagens assinadas não refletem necessariamente a opinião da editora, sendo de responsabilidade exclusiva dos respectivos autores.

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