Em 2019, a ONG EDUCAFRO ofereceu a primeira edição do curso de especialização em advocacia racial, que tem como principal objetivo capacitar de forma técnica profissionais do Direito para atuarem em situações que envolvam a temática racial.
A formação é inovadora no Brasil e foi idealizada pelo professor Irapuã Santana, inspirado no filme "Marshall: Igualdade e Justiça", do diretor Reginald Hudlin, que narra um dos primeiros casos de Thurgood Marshall - interpretado por Chadwick Boseman - primeiro integrante negro da Suprema Corte dos Estados Unidos. A partir do filme, viu-se a necessidade de uma imersão na advocacia racial para atuação de advogados de forma adequada.
O curso é dividido em duas partes. Na primeira são abordados os aspectos técnicos, incluindo as principais peças processuais, recursos, além das composições e competências dos Tribunais Superiores. A segunda parte do curso contempla temas relacionados ao contexto histórico e tópicos que demandam uma análise sob o recorte racial, como a legislação abolicionista, os julgamentos do STF mais relevantes sobre cotas raciais nas universidades e nos concursos públicos (ADPF 186 e ADC 41), os crimes de racismo e injúria racial, redução da maioridade penal, autos de resistência e violência doméstica.
As aulas contam com uma bibliografia que busca estimular o aprofundamento dos temas propostos, possibilitando o debate entre os alunos para a construção de um raciocínio crítico. Como é sabido, o Brasil foi o último país do mundo a abolir o sistema escravocrata, estrutura essa que, combinada com a ausência de políticas públicas de inclusão de pessoas negras à sociedade ou ainda medidas de reparação histórica, é uma das principais causas das desigualdades sociais sofridas pelos negros e negras, que são maioria entre a população que vive em situação de extrema pobreza.
Mesmo diante do referido contexto histórico, as faculdades de Direito não possuem matérias voltadas a abordar a temática racial. Nesse ponto vale lembrar que o sistema escravocrata e o respectivo processo de abolição foram instituídos e regulamentados pelo Estado. Da mesma forma, são diversas as políticas públicas existentes que também são regidas pela legislação e amplamente discutidas no Poder Judiciário, de forma que a ausência de uma discussão na graduação sobre a temática racial revela o despreparo dos profissionais do Direito para atuar nessas demandas.
Conforme demonstrado, a advocacia racial contempla muito mais do que o crime de racismo. A atuação é direcionada a qualquer área do Direito por meio da qual se possa alcançar a equidade de direitos historicamente negada à população negra.
A título de exemplo, a EDUCAFRO participou da mais recente conquista da população negra: cota do fundo eleitoral para candidaturas de negros nas eleições. O julgamento foi concluído em agosto pelo Tribunal Superior Eleitoral, oportunidade na qual foi analisada uma consulta elaborada em parceria com a deputada federal Benedita da Silva. Os partidos eleitorais deverão destinar uma parcela do fundo eleitoral de maneira proporcional à quantidade de candidatos negros e brancos, assim como o tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na TV.
Referida consulta originou-se justamente da diferença de candidaturas de pessoas negras e brancas tanto para o Legislativo como para o Executivo, causada pela discrepância da capacidade socioeconômica. A ausência de representatividade nas diversas funções políticas significa falta de representatividade política, que repercute na falta de iniciativas públicas pensadas para a população negra.
Com o entendimento de que os incentivos deveriam ser aplicados apenas em 2022, a EDUCAFRO elaborou a ADPF 738, na qual obteve uma medida cautelar importante para que a decisão do TSE seja aplicada ainda nas eleições de 2020, posteriormente referendada pelo plenário.
A atuação na justiça eleitoral e no STF de forma estratégica e coordenada resultou em uma conquista histórica para o movimento negro do Brasil. Por meio da capacitação técnica é possível manusear as ferramentas necessárias à construção de uma sociedade antirracista e efetivamente inclusiva, mostrando-se assim a relevância da advocacia racial no Brasil.