A vida de um advogado cadeirante | Análise
Análise

A vida de um advogado cadeirante

Por Fábio Alonso Vieira, sócio fundador de Kestener, Granja & Vieira Advogados

4 de March de 2021 8h

Depois de alguns anos me recuperando de um acidente de carro, que me deixou paralisado da cintura para baixo e obrigou-me a locomover-me em cadeira de rodas, iniciei o curso de Direito na Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo, em agosto de 1993. Ao mesmo tempo em que estava excitado com o recomeço e com a possibilidade de voltar a estudar, encontrava-me preocupado com as diversas barreiras e dificuldades com as quais me depararia nos próximos anos, algo que ocorreu logo nos primeiros dias.

Não posso deixar de registrar que a reitoria da Faculdade de Direito da universidade sempre fez o possível para acomodar as minhas dificuldades e solucionar os problemas. Logo de início, por exemplo, consegui uma autorização para estacionar o meu carro dentro do campus. Por possuir prédios tombados, algumas obras que poderiam auxiliar na locomoção de estudantes cadeirantes não eram permitidas. Apesar disso, consegui aprovação para a construção de uma rampa na lateral do famoso Prédio 4 do Direito e para permanecer pelos cinco anos do curso nas salas do andar térreo.

Aproveito para pedir desculpas a todos os meus veteranos do último semestre do curso de Direito por ter tomado deles uma das salas mais cobiçadas do curso na ocasião, mas o fato é que terminei os estudos com total tranquilidade. Muito, também, graças aos meus amigos de faculdade que sempre me ajudaram quando era necessário.

No início, queria seguir a carreira da magistratura, mas confesso que a sistemática da carreira, com a alocação dos novos juízes em comarcas longe da capital de São Paulo, me afligia. Os prédios públicos não eram muito acessíveis e não havia vagas para portadores de necessidades especiais. As calçadas - muitas delas ainda hoje - eram ruins e não dispunham de rampas nas esquinas. Isso me fez deixar esse projeto de lado.

Algo similar ocorreu com a decisão de não atuar com contencioso. Já no final do terceiro ano, decidi que precisava ter um estágio remunerado. Enviei diversos currículos e fui convidado para uma entrevista num escritório de advocacia localizado em uma casa no Alto de Pinheiros. Para a minha (in)felicidade, enquanto tiravam um carro da rampa da garagem para eu poder entrar, o tempo fechou e aquela chuva torrencial de janeiro veio ao chão, me deixando em sopa. Quando a advogada que me entrevistou me viu, acredito que ela tenha pensado: "E se ele estivesse com os nossos processos? Teriam virado um purê!". Não fui contratado, mas refleti e vi que precisava buscar alternativas, até porque, somado a isso, havia a falta de acessibilidade em fóruns e tribunais, a ausência de locais para estacionar e a dificuldade de locomoção pelas calçadas. A vida seria muito complexa!

Fui, então, trabalhar no departamento jurídico de uma multinacional que, além de me acolher de maneira extraordinária, é, até hoje, uma das clientes do escritório que fundei com meus dois queridos amigos e sócios. Parece-me que a dedicação e o sentimento de ownership de um jovem cadeirante cativou a liderança da empresa naquela oportunidade, de tal sorte que fui efetivado. Meu primeiro emprego como advogado assegurado!

Apesar de adorar o ambiente e as pessoas, percebi que meu sonho era, de fato, advogar em um escritório de advocacia, pois o lado empresarial e negocial da profissão sempre me deixava ouriçado. Passei por alguns escritórios de médio porte ao longo destes 25 anos e, em todos eles, a liderança sempre se preocupou em adequar os espaços às minhas necessidades. Banheiros, salas e portas foram ajustados antes da minha chegada e vagas de garagem disponibilizadas para facilitar a vida e evitar o trauma da primeira entrevista em escritório quando ainda estagiário.

É importante ressaltar que durante vários anos não havia a consciência de inclusão que existe hoje. As construções, sejam públicas ou privadas, não eram pensadas para receber PCDs. E, mesmo diante de tais barreiras, isso nunca se demonstrou um problema pelos lugares em que passei. Grande parte, graças às pessoas que tive oportunidade de cruzar o caminho e um certo reconhecimento ao meu jeito debochado e gozador de encarar as limitações que a vida me impôs, o que fez com que essas questões ficassem mais leves para aqueles que estavam - e ainda estão - ao meu redor.

Fiz dezenas de viagens a trabalho. Muitas delas sozinho. Até para Luanda, em Angola, onde eu fui atender a um projeto que muito me orgulha até hoje (na verdade, foram cinco viagens para aquela bela cidade). Numa delas, quase tive a cadeira extraviada, mas, ao final, encontraram-na. Noutra, o pneu da cadeira de rodas furou por duas vezes consecutivas. Fui carregado por escadas, ruas íngremes e esburacadas num calor de 40 graus. No entanto, nada me impediu de realizar as atividades para as quais eu tinha sido designado, até porque fui agraciado com uma suíte adaptada na vila onde ficávamos. Posso dizer que foram momentos inesquecíveis da minha vida profissional e pessoal.

Hoje, as coisas estão menos complexas. O escritório que montamos há cinco anos é totalmente acessível e a logística de trabalho hoje me permite uma fácil locomoção. São raros os momentos em que me deparo com barreiras intransponíveis, seja pelo fato de elas serem fisicamente superáveis, ou porque conto com a boa vontade (novamente) daqueles com quem convivo.

Não acredito que a vida profissional tenha sido mais difícil por estar numa cadeira de rodas, mas certamente ela se mostrou altamente gratificante e prazerosa. Posso dizer que estou orgulhoso do que fiz até o momento. E se puder deixar uma sugestão: faça a sua vida ser leve e viva-a com alegria e bom humor sempre que puder. Muitas vezes, felicidade, satisfação e superação são meras questões de perspectiva.

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