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A relativização do instituto do stalking horse - análise e perspectivas futuras

Por Ligia Cardoso Valente, Marco Aurélio Nogueira e Guilherme Salles, respectivamente coordenadora jurídica, advogado e estagiário do Finocchio & Ustra Sociedade de Advogados

9 de September 16h40

A modalidade stalking horse é um mecanismo que vem sendo amplamente utilizado em processos de recuperação judicial e em falência para a alienação de ativos de empresas em dificuldades financeiras, as chamadas Unidades Produtivas Isoladas (UPI), nos termos do artigo 60-A da Lei 11.101/2005.

Trata-se de um procedimento em que um player interessado apresenta uma oferta inicial para aquisição dos bens que, por ser vinculante, estabelece um valor mínimo para a transação. Esse investidor, denominado stalking horse bidder, desempenha um papel fundamental ao criar um "piso" para o leilão competitivo, evitando que os ativos sejam subavaliados e, consequentemente, estimulando a participação de outros interessados.

Em contrapartida aos custos das diligências realizadas para avaliação dos bens, o investidor stalking horse recebe benefícios como o direito de cobrir lances concorrentes (right to match) e, em alguns casos, a restituição de despesas, caso não seja o vencedor.¹

Porém, o uso do stalking horse no Brasil não está consolidado por, de fato, não estar previsto expressamente na Lei que rege a Recuperação Judicial e Falência. O instituto tem passado por ajustes e adaptações tanto doutrinários quanto jurisprudenciais do país, e mudanças na legislação e novas interpretações dos tribunais vêm relativizando sua aplicação, como ocorreu recentemente em um caso analisado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP).

Para que seja entendido o "usual" desse instituto, é importante trazer como seu funcionamento se aplica à realidade do Brasil. Inicialmente, a empresa em recuperação judicial ou o administrador judicial (no caso de falência) identifica os ativos das devedoras que serão alienados. Isso pode incluir as Unidades Produtivas Isoladas (UPIs), equipamentos, imóveis ou até a totalidade da empresa. A estratégia de venda é definida levando em consideração a maximização do valor a ser arrecadado e a viabilidade econômica da operação.

Investidores que tenham interesse em apresentar uma oferta vinculante entram em negociação, geralmente sob a supervisão do juízo e do administrador judicial. O investidor selecionado formaliza sua proposta inicial de compra, que deverá conter um valor mínimo de aquisição e eventuais condições específicas para a transação. Uma vez aprovada, a proposta vinculante passa a servir como referência para a realização do leilão competitivo.

Após a aprovação judicial, é publicado um edital com as regras da alienação, incluindo o valor mínimo estabelecido pela proposta do stalking horse e são apresentados os critérios para a participação de novos interessados. No leilão, outros investidores devem apresentar lances superiores ao valor apresentado inicialmente na proposta vinculante. O stalking horse bidder, por sua vez, pode exercer o direito de cobrir a melhor oferta, garantindo sua posição como comprador, caso sua proposta esteja igualada ao maior lance.

Desenhado o cenário padrão de como seria a previsão de uso deste instituto, recentemente, o Tribunal de Justiça de São Paulo, ao analisar a aplicação desta modalidade de leilão, fugiu do comum.

Na recuperação judicial do Grupo Oswaldo Cruz, o plano previa a venda de imóveis para gerar liquidez e pagar credores. Inicialmente, a modalidade stalking horse foi autorizada, garantindo a um investidor o direito de cobrir lances futuros e, assim, manter sua proposta no leilão. No entanto, disputas entre interessados geraram incerteza sobre a condução do procedimento, de modo que a administração judicial recomendou, então, que a venda ocorresse sem o uso desta modalidade, alterando o previsto e permitindo uma concorrência mais aberta e transparente.

O juízo responsável aceitou a recomendação, alterando a modalidade de leilão para a de propostas livres. A decisão foi confirmada pela 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJSP, que rejeitou o recurso de quem defendia a manutenção do stalking horse. Para os desembargadores, a mudança era necessária para garantir a livre concorrência e a maximização do valor dos ativos, princípios essenciais na recuperação judicial.

Esse entendimento reforça que o stalking horse não é uma regra fixa, mas uma ferramenta que deve ser usada com cautela, conforme as particularidades de cada caso e, quando há risco de prejudicar a competitividade e a segurança do processo, é legítimo afastar essa modalidade.

Por outro lado, essa flexibilização pode gerar um efeito colateral: a insegurança jurídica para investidores, isso porque muitos deles veem no stalking horse uma forma de proteção mínima para suas ofertas e, sem critérios objetivos para sua aplicação, pode haver um desestímulo à participação de interessados nos bens em leilões judiciais.

Esse cenário impacta diretamente a recuperanda ou a massa falida, que pode enfrentar dificuldades para atrair propostas competitivas e, consequentemente, obter valores mais vantajosos na alienação de seus ativos. Além disso, a redução da concorrência afeta os credores, ação que pode comprometer a recuperação dos seus créditos diante de um processo de venda menos disputado e, potencialmente, menos lucrativo.

Portanto, encontrar um equilíbrio é fundamental. Se, por um lado, é preciso garantir transparência e concorrência saudável, por outro, a previsibilidade e a estabilidade do mecanismo são essenciais para atrair investidores qualificados. A expectativa é que os tribunais estabeleçam diretrizes mais claras para sua utilização, de forma a beneficiar tanto as empresas em recuperação quanto os credores e potenciais compradores de ativos, podendo a ampliação do uso deste instituto levar, futuramente, a uma atualização legal para constar sua previsão.

Ligia Cardoso Valente

Marco Aurélio Nogueira

Guilherme Salles

¹https://corporatefinanceinstitute.com/resources/valuation/stalking-horse-bid/

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