A prescrição, passível de alegação e de reconhecimento tanto nas relações privadas quanto nas públicas, assume especial relevo no âmbito do direito punitivo genericamente considerado, em virtude do maior rigor das penalidades que podem ser aplicadas. Com a edição da Lei 9.873/99 vieram a ser estabelecidas, no contexto do Direito Administrativo Sancionador, regras aplicáveis à toda Administração Pública Federal acerca da prescrição da ação punitiva, quando do exercício do poder de polícia que lhe é inerente. No entanto, passado longo tempo desde a sua incorporação ao regime jurídico-administrativo, a norma ainda carece da devida complementação a fim de elucidar temas que têm causado controvérsias, o que nos parece possível de ser implementado no âmbito dos entes públicos destinatários daquela lei, como nos casos do Banco Central do Brasil e da Comissão de Valores Mobiliários, reguladores do mercado financeiro e do mercado de capitais, respectivamente. Entendemos possível que a matéria seja objeto do devido tratamento em normativo infralegal editado em razão de competência própria, complementando assim e nos limites próprios do regulamento, a lei ora vigente. Nesse sentido, Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, ao tratar da natureza jurídica da atividade regulamentar, lembra que como salientado por Kelsen (Teoria General del Derecho y del Estado, pp. 128-68), a formação do Direito opera-se por graus, e, então, o ato jurídico inferior é execução do superior. Destarte, a lei é execução imediata da Constituição, como o regulamento, da lei. Entende aquele autor que, em consequência, compete ao Executivo adaptar a lei para sua boa aplicação, mediante regulamentos executivos.
A vigente lei sobre prescrição na seara administrativa, logo no seu artigo 1º, caput, suscita a carência quanto ao estabelecimento da espécie de prescrição nele prevista, bem como de sua definição. Remete também, no final de sua redação, à necessidade de firmar, com clareza, o entendimento acerca de infração permanente ou continuada. Verifica-se no primeiro caso, certa confusão entre os aplicadores da norma no sentido de estabelecer, para fins de determinação do prazo prescricional correspondente, se o caso é de prescrição ordinária ou de prescrição intercorrente. Entendemos que a prescrição do caput daquele dispositivo é a chamada ordinária e, via de consequência, o seu prazo quinquenal, só se aplica aos casos em que ainda não houve, por parte da Administração Pública Federal, a formulação de acusação e a consequente instauração do respectivo processo administrativo sancionador. Consequentemente, a prescrição tratada no § 1º, do mesmo artigo é a intercorrente cuja incidência o legislador reservou para os processos já instaurados e em curso e, portanto, com acusação já formulada. No segundo caso, face àquela indefinição, os aplicadores da norma administrativa têm exercido uma discricionariedade descabida e desatrelada do necessário conteúdo jurídico, relativamente à caracterização de infração permanente ou continuada. Assim, sugerimos que seja aplicado, nesse caso, o conceito próprio do direito penal, tendo em vista a similar natureza punitiva. Posto isso, sugerimos texto regulamentar¹que poderia, como dito, constar de norma infralegal editada por ente público com competência normativa específica, com o intuito de que, na mesma passagem, a disposição eventualmente incorporada ao nosso direito positivo promova a necessária elucidação de ambas as questões, contribuindo para a melhor aplicação da regra prescricional.
No parágrafo primeiro, do mesmo artigo inicial, o texto faz referência a procedimento administrativo pendente de julgamento ou despacho, o que demanda uma definição legal do que seja este último. Isto porque, as decisões na instância administrativa têm sido vacilantes, chegando até a considerar como despachos meras movimentações formais e rotineiras nos ambientes público-administrativos e que acabam por desvirtuar o instituto, perenizando o direito de punir. Vale lembrar que despachoé espécie de ato administrativo e, sempre que os autores tratam do tema, particularmente quando abordam a classificação dos atos administrativos, sempre é mencionado o despacho. Logo, só será despacho o pronunciamento da autoridade administrativa que se amolde à definição de ato administrativo. Exemplificativamente, "ato administrativo é a declaração do Estado ou de quem o represente, que produz efeitos jurídicos imediatos, com observância da lei, sob regime jurídico de direito público e sujeito a controle pelo Poder Judiciário". (Maria Helena Diniz, Direito Administrativo, Atlas, São Paulo, 15ª ed., 2003, p. 189). No que se refere especificamente ao conceito de despacho e ainda exemplificando, Celso Antonio Bandeira de Mello, na mesma linha uniforme da doutrina diz que "finalmente, mencione-se o ‘despacho’, que, sem ser uma fórmula propriamente dita, é a denominação utilizada para referir decisões finais ou interlocutóriasdas autoridades em matérias que sejam submetidas à sua apreciação".. (Curso de Direito Administrativo, Malheiros, São Paulo, 26ª ed., 2009, p.435). Por força disso e a fim de oferecer ao aplicador da lei elementos que lhe permitam a melhor compreensão em relação à infração permanente ou continuada e o correto entendimento acerca do ato administrativo nominado de despacho, propomos a redação abaixo².
Outra disposição controvertida da lei é a trazida pelo parágrafo segundo, também do art. 1º, estabelecendo que quando o fato objeto da ação punitiva da Administração também constituir crime, a prescrição reger-se-á pelo prazo previsto na lei penal. Também em relação à aplicação prática desse preceito, as decisões têm sido díspares, considerando umas que basta o ente público simplesmente informar, como é o seu dever de ofício, ao Ministério Público, normalmente o Federal, sobre um fato que em tese tipificaria crime, para que incida, na esfera administrativa, o prazo prescricional mais longo da lei penal. Outras buscam fundamento na existência de oferecimento de denúncia por parte do Ministério Público como suficiente para determinar o prazo prescricional penal. Há também decisões administrativas pautadas na instauração de ação penal ainda que em curso e, por último, aquelas que exigem decisão penal de primeira instância para a comunicabilidade de prazo prescricional. Enfim, é uma total ausência de uniformidade, o que é certamente despropositado, não isonômico e que gera insegurança jurídica. Ora, fato é que a competência para qualificar uma determinada conduta como ilícito penal é, em nosso ordenamento jurídico processual, inclusive em sede constitucional, do Poder Judiciário, o que leva à conclusão de que alguns dos posicionamentos acima são absolutamente ilegítimos. Recorde-se que a lei posta menciona a hipótese de o fato também constituir crime, e, por certo, não cabe à Administração Pública fazer juízo de valor a esse respeito. Nessa linha, até por aplicação do princípio da razoabilidade, ínsito à Administração Pública, entendemos necessário, para fins de incidência do prazo de prescrição da lei penal, que ao menos tenha sido instaurada a respectiva ação. Nesse momento e depois de exercida a atribuição do Ministério Público, já se teria então uma manifestação formal e própria do Poder Judiciário, ainda que sem definitividade. A fim de contribuir para o deslinde dessa incerteza, sugerimos, diante de hipotética regulamentação, que seja examinado texto proposto a respeito³.
Uma última discussão que vem atravessando os tempos, passados tantos anos desde a edição da lei prescricional, diz respeito ao entendimento que deve observado em relação a qualquer ato inequívoco, que importe apuração do fato, previsto no inciso II, do seu art. 2º, e que se constitui em uma das possibilidades de interrupção do prazo prescricional. A propósito de apuração do fato, em sede de persecução de ilícito penal ou administrativo, há entendimento unânime considerando que os elementos essenciais para a tipificação de condutas reprováveis nesses âmbitos são a materialidade e a autoria. Diante disso, é também razoável deixar marcado, no direito positivado, que só serão considerados inequívocos para os efeitos da norma prescricional, os atos vinculados à apuração daqueles elementos, quais sejam, autoria e materialidade, conforme sugerimos na redação de eventual norma a respeito.
Finalizando e a propósito da competência normativa infralegal, pode ser entendido que a Comissão de Valores Mobiliários ou o Banco Central do Brasil ou ainda outras entidades administrativas aplicadoras da norma prescricional não tenham competência normativa para explicitá-la em normativo infralegal nas suas respectivas esferas de competência. Nesse caso a matéria seria, em razão de entendimento restrito do conceito de poder regulamentar, de competência do Chefe do Poder Executivo, o que demandaria a necessária diligência por parte de interessados, públicos ou privados, neste último caso por meio de entidades representativas de classes, a fim de provocar a edição de decreto⁴ a respeito.
[1]"À prescrição ordinária de que trata o art. 1º, da Lei 9.873/99, de 23 de novembro de 1999, cujo prazo de fluência precede a acusação e instauração de processo administrativo sancionador, serão aplicáveis e estendidos, para efeitos de caracterização de infração permanente ou continuada, os conceitos próprios do direito penal".
[2] "Para fins de caracterização da prescrição intercorrente prevista no § 1º., do artigo 1º, da Lei 9.873/99, a qual se aplica somente aos processos administrativos sancionadores já instaurados e com acusação formulada, considera-se despacho o ato administrativo emanado de autoridade competente que tenha conteúdo de decisão, inclusive interlocutória.
§ Único: Não caracterizam despachos os atos de mera movimentação processual ou de troca de titulares de competências administrativas."
[3] Para efeitos de aplicação aos processos administrativos sancionadores do prazo prescricional da lei penal, conforme estabelecido no § 2º, do artigo 1º., da Lei 9.873/99, é necessário que, pelo menos, já exista ação penal instaurada sobre o mesmo fato e contra a mesma pessoa.
[4]"Considera-se como ato inequívoco que importe apuração do fato, capaz de interromper a fluência do prazo prescricional, consoante disposto no inciso II, do artigo 2º, da Lei 9.873/99, exclusivamente os atos administrativos diretamente vinculados à persecução do ilícito administrativo, relacionados à comprovação da sua materialidade ou autoria".
¹"À prescrição ordinária de que trata o art. 1º, da Lei 9.873/99, de 23 de novembro de 1999, cujo prazo de fluência precede a acusação e instauração de processo administrativo sancionador, serão aplicáveis e estendidos, para efeitos de caracterização de infração permanente ou continuada, os conceitos próprios do direito penal".
² "Para fins de caracterização da prescrição intercorrente prevista no § 1º., do artigo 1º, da Lei 9.873/99, a qual se aplica somente aos processos administrativos sancionadores já instaurados e com acusação formulada, considera-se despacho o ato administrativo emanado de autoridade competente que tenha conteúdo de decisão, inclusive interlocutória. § Único: Não caracterizam despachos os atos de mera movimentação processual ou de troca de titulares de competências administrativas."
³ Para efeitos de aplicação aos processos administrativos sancionadores do prazo prescricional da lei penal, conforme estabelecido no § 2º, do artigo 1º., da Lei 9.873/99, é necessário que, pelo menos, já exista ação penal instaurada sobre o mesmo fato e contra a mesma pessoa.
3 Para efeitos de aplicação aos processos administrativos sancionadores do prazo prescricional da lei penal, conforme estabelecido no § 2º, do artigo 1º., da Lei 9.873/99, é necessário que, pelo menos, já exista ação penal instaurada sobre o mesmo fato e contra a mesma pessoa. 4 "Considera-se como ato inequívoco que importe apuração do fato, capaz de interromper a fluência do prazo prescricional, consoante disposto no inciso II, do artigo 2º, da Lei 9.873/99, exclusivamente os atos administrativos diretamente vinculados à persecução do ilícito administrativo, relacionados à comprovação da sua materialidade ou autoria".
⁴ "Considera-se como ato inequívoco que importe apuração do fato, capaz de interromper a fluência do prazo prescricional, consoante disposto no inciso II, do artigo 2º, da Lei 9.873/99, exclusivamente os atos administrativos diretamente vinculados à persecução do ilícito administrativo, relacionados à comprovação da sua materialidade ou autoria".
José Carlos Verzola é sócio do BBMO Advogados, formado em Direito pela Faculdade de Direito de Franca (1974), Verzola tem especialização em Direito Empresarial pela Faculdade de Direito da Universidade Mackenzie (1985), em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo - USP (1990) e mestrado em Direito do Estado/Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP (2008).