A posição da mulher no sistema de justiça brasileiro | Análise
Análise

A posição da mulher no sistema de justiça brasileiro

Por Helena Lahude Costa Franco e Marília Longo, sócias do Longo e Costa Franco Advocacia

19 de August de 2021 8h

Recentemente, em júri na comarca de Guarapuava, no Paraná, o advogado do réu simulou agredir fisicamente sua colega de tribuna como forma de demonstrar aos jurados os fatos ocorridos, no contexto de plena defesa de seu cliente. Tratava-se de caso de feminicídio (homicídio qualificado pela condição da vítima mulher), no qual o acusado teria matado a companheira, uma advogada, por motivo fútil e meio cruel (emprego de asfixia). Ao final, o réu foi condenado à pena de 31 anos de reclusão.

Tanto o crime, ocorrido em julho de 2018, quanto as circunstâncias peculiares do julgamento em plenário foram amplamente divulgadas pela mídia nacional, abrindo espaço a um debate sobre o tratamento dispensado às mulheres nos espaços destinados à realização da justiça no Brasil, sejam elas operadoras jurídicas, vítimas ou acusadas.

Não há dúvidas que o ato de reproduzir, em plenário do júri, cena de violência real contra uma mulher, ainda que seja parte da estratégia defensiva, é inadmissível, tanto pelo ato em si quanto pela simbologia que carrega. Posteriormente, foi objeto de manifestações de repúdio por diversas entidades de classe, embora os presentes tenham se omitido de intervir no momento da agressão, mas não de filmar a cena.

Em 1993, a Conferência das Nações Unidas sobre Direitos Humanos declarou que qualquer violência contra a mulher é uma violação aos direitos humanos e põe os espectadores, agentes da Justiça, no dever de combatê-la. Eliminar toda a forma de violência e discriminação contra as mulheres é uma das metas dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, que prevê a busca pela igualdade de gênero e o empoderamento de todas as mulheres e meninas.

Apesar dos incontestáveis avanços no combate à violência contra a mulher em âmbito geral, tendo como pontapé inicial a edição da Lei Maria da Penha, em 2006 e prosseguindo com o lançamento de campanhas de conscientização, linhas de denúncias e proliferação de centros de acolhimento e auxílio a mulheres vítimas, ainda há muito a se conquistar e isso passa por uma mudança cultural.

O Silêncio do Sistema Judicial e a Minoria Feminina

O pano de fundo da presente análise é o constrangimento de uma advogada à violência, durante uma sessão do Tribunal do Juri, mas a discussão vai além. Chamou a atenção a presença da ampla maioria de homens no cenário do julgamento. Além de sete jurados, o juiz e seu assistente, havia sete advogados de defesa, um promotor e seu assistente, quatro assistentes de acusação e apenas duas mulheres, nas posições de assistentes do promotor e da defesa. O sistema de justiça brasileiro não deve ser o espaço de reprodução das desigualdades de gênero presentes em nossa sociedade.

O que se observa, através do acesso às estatísticas, é que as mulheres já ocupam quase metade dos cargos no Ministério Público e Magistratura e superam o número de homens inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). No entanto, ainda são raridade nos postos de comando e liderança. No Conselho Nacional do Ministério Público, das quatorze vagas existentes, há apenas duas mulheres. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) tem seis mulheres entre os 18 cargos de gestão, ao passo que a Diretoria do Conselho Federal da OAB tem seus cinco cargos ocupados por advogados homens e apenas 18 mulheres entre os 81 conselheiros federais.

Na OAB, esta realidade será positivamente alterada nas próximas eleições da entidade, neste ano de 2021, em que a paridade de gênero de 50% será garantida nos cargos diretivos e de conselheiros titulares e suplentes, graças ao Projeto Valentina, que conjuntamente com as cotas raciais para negros (30%), culminou na aprovação pelo Conselho Federal da Resolução 05/2020.

Esta constatação também fez parte da fala da Ministra do Supremo Tribunal Federal e primeira mulher presidente do CNJ, Carmem Lúcia, na Aula Magistral do Curso de Direito da Ulbra em março passado. Ao discorrer sobre representatividade, a ministra trouxe à tona a dificuldade das mulheres de ascender profissionalmente a cargos de comando, em razão da desproporcionalidade de tempo dispendido em tarefas domésticas e de cuidados com filhos, em comparação com seus maridos e companheiros. Por isso, são mais comuns entre as mulheres as promoções por tempo de carreira e não por merecimento, estas ancoradas em titulação e produção científico-acadêmica.

O contexto histórico e cultural que ainda impõe às mulheres o exercício de tarefas menos direcionadas à carreira profissional tem como consequência a manutenção do seu status social e a maior dificuldade de ocupação de espaços de poder, mesmo para profissionais de grande qualidade técnica. No entanto, mudar este cenário é um dos passos essenciais para se atingir a igualdade de gênero, tendo em vista que a ocupação dos espaços decisórios permite a construção e divulgação de ideias, bem como implementação de medidas concretas que visem a diminuir as diferenças de gênero.

Mudanças Estruturais e o Combate à Violência e Discriminação das Mulheres

Voltamos ao caso da advogada agredida durante a sessão do Tribunal do Júri e a relação deste fato com as ações afirmativas e a ocupação de espaços de poder pelas mulheres.

Após o ocorrido, o deputado federal Tulio Gadelha apresentou o Projeto de Lei nº 1715/2021, que altera artigos do Código de Processo Penal, para incluir disposições quanto à paridade de gênero no alistamento e na formação do Tribunal do Júri em casos de crimes contra a vida, em geral, e especificamente na formação do Conselho de Sentença em casos de crime de feminicídio.

Se queremos mudar os resultados, e neste caso estamos tratando do enfrentamento das situações de violência contra mulheres praticadas por homens, as ações afirmativas visam a combater o machismo e a desigualdade estrutural. Ainda que de forma implícita, a presença exclusiva ou majoritária de homens deixa o espaço de trabalho e de decisão suscetível a violências contra as mulheres, como a ocorrida no caso da advogada do júri.

A presença de mulheres nos espaços decisórios, ainda que garantida por meio de ações afirmativas, como forma de equidade e diversidade, é, mesmo que de forma inconsciente, um anseio da nossa sociedade, seja através da representatividade no Poder Legislativo, no Executivo ou no Judiciário.

No ano de 2020, durante a pandemia, aumentaram os casos de violência contra as mulheres, subjugadas numa sociedade ainda marcada pelo machismo, e que buscarão no sistema judiciário amparo aos seus reclames, na expectativa de obterem justiça e não uma extensão da desigualdade a qual estão regularmente submetidas.

O advogado é agente de realização da Justiça, e como tal está impedido de praticar qualquer ato de violência contra a mulher, seja no exercício da profissão, seja no seu cotidiano, como foi declarado pelo Conselho Pleno do CFOAB, em voto de relatoria do Conselheiro Federal gaúcho Rafael Canterji, que rejeitou a inscrição nos quadros da OAB de advogado que praticou atos de violência contra mulher. A todos os agentes recai o dever de não praticar qualquer ato de violência como o praticado durante uma sessão do júri. Mas mais do que não permitir tais atos, o sistema judiciário deve ser palco de equidade, de controle das desigualdades e de combate ostensivo à violência.

Ações afirmativasAnálise Advocacia D&ID&IDireito CriminalDireito PenalDiversidade & InclusãoDiversidade de gêneroHelena Lahude Costa FrancoLongo e Costa Franco AdvocaciaMarília Longo