A LGPD e os LGBT+: uma análise além das definições legais | Análise
Análise

A LGPD e os LGBT+: uma análise além das definições legais

Por Lívia Moraes, advogada do escritório Barcellos Tucunduva Advogados

27 de April de 2021 8h

Afinal, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) reconhece identidade de gênero e orientação sexual como dados pessoais sensíveis? A resposta não é tão simples quanto parece.

A identidade de gênero é compreendida como a experiência interna e individual do gênero de cada pessoa, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído no nascimento, incluindo o senso pessoal do corpo. Tal identidade, portanto, refere-se ao indivíduo olhando para si mesmo. A orientação sexual, por outro lado, tem relação com o outro, sendo compreendida como a capacidade de cada pessoa de ter uma profunda atração emocional, afetiva ou sexual por indivíduos de gênero diferente, do mesmo gênero ou de mais de um gênero, assim como ter relações íntimas e sexuais com essas pessoas.

A comunidade LGBTQIAP+ representa as mais variadas formas de identidade e orientação que enfrentam uma luta diária contra a discriminação. Essa luta não tem tatame fixo em um mundo cada vez mais tecnológico e conectado: os pátios das escolas transbordam para os comentários em fotos nas redes sociais e a rua, hoje, continua dentro de casa pelos cabos de internet.

Nessa lógica, considerando a centralidade das informações nas relações e na economia atual, as legislações de proteção de dados pessoais surgem como uma arma importante da comunidade. Tais leis fortalecem a intenção de evitar que as informações características sejam utilizadas em ataques pessoais e como forma a propagar ainda mais a discriminação e o preconceito.

No Brasil, a LGPD surge como ferramenta de proteção e garantia das pessoas físicas. No entanto, não explicita o tratamento protetivo específico das particularidades da comunidade LGBTQIAP+, parcela vulnerável da população brasileira. É relevante, principalmente, a falta de referência direta às características de gênero e orientação, particularmente relevantes a essa população, na definição de dados pessoais sensíveis.

Apesar de um dos princípios da legislação ser o de não-discriminação, o artigo 5º inciso II da LGPD define como dados pessoais sensíveis: "dado pessoal sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico [...]".

Pode-se discutir, em primeiro momento, sobre a pertinência ou não da aparente taxatividade desse rol, considerando uma possível abrangência de outros conceitos de especial sensibilidade por serem, historicamente, utilizados em discriminação negativa. Independentemente disso, é importante analisarmos o texto seco do artigo e fazer os devidos paralelos com os conceitos de identidade de gênero e orientação sexual citados anteriormente.

Um dos dados listados no artigo 5º, II é o dado referente à vida sexual. Enquanto na União Europeia o GDPR (General Data Protection Regulation) traz de forma explícita a orientação sexual como dado pessoal sensível em seu artigo 9º, a LGPD não define a expressão "vida sexual", que, apesar de estar agrupada com os dados de saúde na letra da lei, deve ser entendida de forma muito mais ampla que a mera exposição a infecções sexualmente transmissíveis, já que existe preconceito social baseado na atividade sexual (slut-shaming) e orientação sexual (homofobia, bifobia, etc) . Dessa forma, a extensão do termo e sua aplicação ainda dependem, principalmente, da atuação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados em casos práticos e diretrizes específicas, mas a interpretação aparentemente mais lógica faz com que "vida sexual" englobe a atividade e as diversas orientações sexuais num geral (homossexualidade, pansexualidade, bissexualidade, assexualidade e outras).

Por outro lado, o mesmo paralelo não pode ser feito com os dados de identidade de gênero, que em nada se relaciona com "vida sexual". No caso de a lista do artigo 5º, II não ser taxativa como incitado em alguns debates, teríamos menos entraves conceituais em relação à inclusão da identidade de gênero nesse rol, considerando o princípio de não-discriminação da LGPD. No entanto, para que haja maior proteção a esses dados sob a égide da LGPD sem dependência de interpretações adicionais não consolidadas, é necessário nos fiarmos em outras bases.

Depois de iniciada a discussão sobre a extensão do conceito de "raça" em julgamento de "habeas corpus" em 2004, o Supremo Tribunal Federal definiu de modo claro e geral, em 2019, que a discriminação com base em orientação sexual e identidade de gênero (homofobia e transfobia) se enquadram nos crimes de racismo, conforme a lei correspondente nº 7.716/2018 (cf. julgamento da ADO 26 e MI 4733), considerando que o conceito de racismo ultrapassa aspectos biológicos ou fenotípicos. Assim, uma interpretação voltada a evitar discriminações nos leva ao raciocínio de que a identidade de gênero deve ser considerada englobada no conceito de "raça" no escopo do artigo 5º, II da LGPD, ainda que não seja o sentido corriqueiro do termo.

Você deve estar se perguntando o que isso tudo significa na prática, certo?

Ao classificar um dado pessoal sensível, a LGPD determina hipóteses (bases legais) específicas para seu tratamento, bem como ônus e obrigações adicionais, buscando salvaguardas mais consistentes para a garantia de proteção dessas informações. Considerando as interpretações indicadas acima, uma empresa, por exemplo, com funcionários LGBTQIAP+ em seu quadro de funcionários e/ou em sua lista de clientes, deve ter atenção especial ao uso dessas informações, restringindo-se às bases legais específicas dispostas pela lei para o tratamento desses dados. As áreas de Recursos Humanos, Gestão de Pessoas e outras relacionadas precisam de atenção e cuidados ainda maiores.

É preciso manter sempre em mente o fato de que a informação que você possui sobre uma pessoa que faz parte da comunidade LGBTQIAP+ pode valer a vida dela, muitas vezes literalmente. Você já refletiu sobre isso ao lidar com dados de identidade de gênero e orientação sexual de clientes e colaboradores na sua empresa?

Autoridade Nacional de Proteção de DadosBarcellos Tucunduva AdvogadosBT LawD&IDE&IDiversidadeDiversidade & InclusãoDiversidade, Equidade e InclusãoGDPRGeneral Data Protection RegulationGestão de PessoasLei Geral de Proteção de DadosLGBT+LGBTQIAP+LGPDLívia MoraesRecursos Humanos