Ao considerar a noção lacaniana de que Marx teria "inventado o sintoma" — isto é, mostrado que certos desvios, falhas ou excessos não são simples acidentes corrigíveis, mas expressões necessárias e reveladoras da própria lógica do sistema — abre-se um horizonte interpretativo potente para compreender fenômenos institucionais. Conforme Zizek, se, para Freud, o sonho carrega a chave do funcionamento do inconsciente, para Marx, crises econômicas, guerras ou distorções estruturais são lugares onde a verdade do modo de produção se manifesta. O sintoma, nesse sentido, não é apenas um "defeito" a ser eliminado, mas a fissura por onde se vislumbra a lógica íntima que sustenta o todo.¹
O caso recente da magistrada demitida no Rio Grande do Sul ², em decisão administrativa, por fraudar decisões em mais de dois mil processos com o objetivo de aumentar artificialmente a produtividade, revela a tensão entre a função jurisdicional e a pressão sistêmica por resultados numéricos e apresenta-se como verdade sintomática.
O Judiciário entre números, metas e métricas
Essa conduta não pode ser analisada de maneira isolada, como um desvio puramente individual; ela se insere em um contexto institucional complexo, marcado pela internalização de parâmetros de gestão empresarial no Judiciário, onde o desempenho é mensurado por indicadores quantitativos e onde a celeridade e o volume de decisões se tornaram critérios centrais de avaliação.
A lógica que sustenta esse ambiente decorre daquilo que Pierre Dardot e Christian Laval³denominam de "nova razão do mundo", uma racionalidade que transforma a concorrência e a performance em normas de conduta para o Estado e seus agentes. Trata-se de uma forma de governamentalidade⁴ que não apenas desregula mercados, mas reorganiza as funções públicas segundo padrões empresariais, introduzindo métricas, metas e dispositivos de gestão que passam a pautar a atividade jurisdicional.
No Brasil, esse movimento é evidenciado na implementação de mecanismos como o programa "Justiça em Números" do Conselho Nacional de Justiça, que, embora tenha objetivos de transparência e modernização, também reforça um regime de avaliação que premia a produtividade e a aceleração das decisões.
Governança judicial e os descaminhos do produtivismo
Essa governança por números⁵, como se observa no episódio em questão, tende a inserir o ato de julgar em uma "linha de montagem", na qual a fundamentação das decisões perde densidade e a singularidade dos casos é diluída em modelos replicáveis. A "produtividade" se converte em um metavalor, sobrepondo-se aos princípios da justiça clássica e reduzindo a função deliberativa do juiz a um cumprimento mecânico de metas.
A situação da magistrada demitida é, nesse sentido, um indicativo importante da adaptação dos profissionais a um sistema que valoriza mais a quantidade do que a qualidade, estimulando condutas que aceleram a produção estatística, ainda que comprometam a substância jurídica das decisões.
Esse fenômeno, em termos regulatórios, está ligado ao que Benoit Frydman chama de "objetos normativos não identificados" — normas técnicas, portarias e resoluções que, embora não sejam fruto do processo legislativo tradicional, exercem força normativa sobre a prática judicial.⁶A pressão por produtividade, materializada nessas normativas, opera sob o pretexto de modernização e eficiência, mas introduz uma contradição: quanto mais se privilegia a celeridade e a uniformidade, mais se restringe a dimensão hermenêutica e reflexiva inerente ao ato jurisdicional.
Um movimento que no Brasil é verificado desde a Emenda Constitucional nº 45 e seu conjunto de reformas do Poder Judiciário e encontra albergue também na Constituição Federal, na positivação do princípio da eficiência administrativa em seu artigo 37, que consagra o paradigma da eficiência econômica e o modelo gerencial no âmbito da administração pública, o qual se transfere para o espaço jurídico e, especialmente, para as práticas processuais e decisórias que começam a delinear-se como serviços prestados ao consumidor-jurisdicionalizado, considerado como um cliente que deve ter a sua disposição uma prestação rápida e com baixo custo econômico.⁷
Eficientismo e as verdades estruturais do sistema de justiça
Importante lembrar que ao privilegiar a velocidade e a padronização, o sistema corre o risco de esvaziar a legitimidade democrática da jurisdição, substituindo o julgamento pela contagem e a deliberação pela repetição - mathematical turn.⁸
Nesse cenário, é relevante apontar que a demissão da magistrada pode afirmar os limites formais da conduta judicial, mas não enfrenta a raiz do problema: a própria estrutura gerencial que induz comportamentos voltados mais ao cumprimento de metas do que à realização da justiça material. Enquanto essa racionalidade permanecer como matriz organizadora do Judiciário, casos semelhantes tenderão a se repetir, não por mera inclinação individual dos magistrados, mas porque o próprio sistema recompensa atalhos que maximizem números.
À luz da chave de leitura proposta no início do texto, a conduta da magistrada não é apenas um ato desviante: ela é o sintoma pelo qual o Judiciário deixa entrever sua verdade estrutural. O gesto de "copiar" decisões em massa não pode ser compreendido como anomalia externa à lógica institucional; ele é a tradução prática de uma racionalidade que mede a excelência pelo volume, e não pela densidade argumentativa. "Identificar-se com o sintoma", nesse contexto, implica assumir que a fissura não é periférica, mas central — e que, sem enfrentar essa lógica produtivista e eficientista em sua raiz, a repetição de casos semelhantes será não apenas provável, mas inevitável.
Marcelo Oliveira de Moura é sócio do MMAA Advogados Associados, Mestre e Doutor em Direito na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS/RS), Pós-Doutorado no Departamento de Direito e Economia da Faculdade de Economia da Universidade de Roma I - La Sapienza.
[1]ZIZEK, Slavoj. Como Marx Inventou o Sintoma? In: Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1999.
[1]https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2025/07/14/juiza-demitida-rs-carreira.ghtml. https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2025/07/14/juiza-demitida-rs-investigacao-copia-processos.htm.
[1]DARDOT, Pierre. LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo. 2016.
[1]A categoria é com profundidade tratada nas obras: FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população: curso dado no Collège de France (1977- 1978) . Editora Martins Fontes. São Paulo. 2008. FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979). São Paulo: Martins Fontes, 2008.
[1]DARDOT, Pierre. Julgamento judicial posto à prova da governança pelos números. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba: Editora PUCPRESS, v. 37, e202532657, 2025
[1] FRYDMAN, Benoit. O fim do Estado de Direito: governar por standards e indicadores .Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2016.
[1] MOURA, Marcelo Oliveira de. AGUIAR Daiane Aguiar de. O fim do Estado- Jurisdição: Uma análise da transposição dos câmbios gerenciais à atividade jurisdicional. In: ESTADO & CONSTITUIÇÃO O "FIM" DO ESTADO DE DIREITO. 01ed. São Paulo: Tirant, 2018, p. 105-116. MOURA, Marcelo Oliveira de.; MORAIS, Jose Luis Bolzan de. O neoliberalismo eficientista e as transformações da jurisdição. REVISTA BRASILEIRA DE DIREITO IMED., v.13, p.177 - 195, 2017.
[1]MOURA, Marcelo Oliveira de. Os números da justiça e o "eficientismo": desafios para atores jurídicoshttps://www.iargs.com.br/os-numeros-da-justica-e-o-eficientismo-desafios-para-atores-juridicos/ Acesso em 15/08/2025.
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